+ de desfiladeiro, o texto calo, sobre a suavidade de morrer-se
calo
à Mira
e à
Tila
Um
rosto retangular, exaurido, de cor um pouco em bruma , reflete-a. Entretanto olhos, abertos ,
penumbras de uma bainha
desfeita , olhos
d’ água . Leya. Ocorre balançar
e com ela
as águas , o embranquecido cardume que em tudo em si ia
se formando dissolvido, os óleos o sabão os condimentos
flores ao longo, eiras do banho . Quando vê que está quente ,
insuportável quente , ela entra com o
pé , unha
esquerdos . Quando
realmente é quente
o tom e viço
das águas , muda ,
opaca , em
branco novamente ,
a liderança sobre o translúcido ,
tudo memória ,
põe o peso , deixa-se flagrar pela
latência lenta dos movimentos ,
é assim , nesse ponto
difuso , que
culmina a entrada de Leya na banheira . Transpirada, lembra-se, o outro, o que mandara construí-la em
tamanho abusivo, de altura
fora do esperado, sabendo o melhor para afundar
não apenas os pés .
Um tanque, um poço. Impossíveis. Insuportável. Não
lhe fazia os jeitos
os outros moldes, os que excluíam ora
cabeça , ora
joelhos , ora
olhos . Soube sempre, nas tabernas
instintivas, ser impermeável
tudo isso
e então o balneário
lasso, dando cabo às dimensões daquele recinto ,
inteiro . Que
olhos , cabeça
e joelhos deviam afundar
com o restante de si , peitos, costas, indícios .
Leya, a graça
diminuta daquela banheira
excepcional , sempre
murando-se do feito do pai, o pai nas garras da hidra , riria, aquela sua prática
de mergulho, que sim ,
hora ou
tanta, atravessava o jantar , esquecia-se por lá ,
arruinava animadas conversas , todas as
contas de quando o pai
se metia dentro e bifurcava as portas , trancava-se naquela cripta
de águas, e morria. Frequentemente era o comum ,
nos desfazeres
dos anos o costume
piora-se, tornando o armazém debaixo em horrores úmidos, o comércio
infla e murcha, ele dizia, os portões rendidos ao informe de tudo. Em andanças , a mãe ,
a irmã, ela , decididamente
ela , ajeitavam ao cotidiano
algumas lágrimas que
eram dali, daquela casa , daquele pai enlouquecendo em
banhos , daquele nostálgico batismo em cinco ou oito horas , nas
madrugadas , nas janelas
abertas , no trânsito
dos corpos enrugados, exauridos. Os julgamentos
eram os piores , não
atendia à receita ou
repreensão , as horas
da família e da seresta
que esperassem pelas águas , o pai
entrava novamente na enorme banheira .
Elogiava-se disso, resistia, era seu truque de permanência e aos setenta e quatro
encomendou três espelhos
retangulares, semelhante às proporções do tanque
e abotoou: um ao lado
esquerdo , entre
as duas dobras de suas
pernas e pias ,
outro curiosamente
inclinado entre a parede
esquerda e o teto ,
dando-se à branquidão suada, e o terceiro na correspondência
exata aonde
se deitava, no teto , no de cima . Fazia do banheiro
seu novo estado,
sua nova chance de nomenclatura branca,
amava dizer meu pântano branco, ia
preparando-se ao retorno inexato , que mancava interditos
nos demais ,
entretanto interlúdio
nele, faixa de outro
plano , ele
retornava com o ápice
quieto, a categoria dos místicos. Era em si mesmo, nenhum ofuscamento do divino
fora do corpo n’água. Era ali, ali retornou.
Leya profunda
nela. Ajeita o corpo que não é tão grande e
sendo leve , de carne ,
assusta os ossos que
n’água saltam maiores ,
esdrúxulos , ou
se mexem, dando sugestões de um outro corpo , um corpo talvez de
criança , faminta ,
burilada, um corpo
bem menor que aquele no
qual ela se fantasiava vendo, no ajuste do terceiro
espelho , tudo
sendo claro nevoento (alguém sugeriria que era melhor na névoa que no nítido?). O pai
quisera a questão de examinar
bem seu retrocesso e não
temeu quando a cartilagem
amolecida produzia sonoridades dos pingos, da rotatória, do ralo, uivos ou , quase
adormecendo, pareceriam flautas nas
veias. Foi encarando a dispersão por todos os ângulos . Ela se
lembra, no instante , o comportamento de cinema
dos últimos dias
do pai : um
sorriso e cabelo
prontos , a maior
quantidade de luzes
acesas pela casa
– todos já
banidos pelo cansaço do molhaçal ao qual
lhes embutira o pai
– e as velas dos quatro
cantos nunca
finadas, nunca vi quem
as trocava. Os últimos dias. O pai, gesticulava lento
como se outros, em
tela profundamente
posta, tivessem a seguir-lhe os caminhos ,
efusão dos vultos. Então ele
procurando-se atuar cardealmente
e a boca na busca de mover cada palavra límpida , forte .
A sensação nos
adestrou a olhar ao redor ,
caçar gente
que pudesse estar
por ali ,
nele, e os médicos não
alertando nada , o pai
lúcido como um tapete de estórias , fatalmente
verdadeiras, era uma cantiga que ele impunha. Como o mofo, uma sequência de heras
líquidas a liquidar as muralhas da casa. O costume
cessou por acastelar-se ali e ali era
ele, tudo aquilo. A mãe
já fazia um
pouco os velhos carinhos velhos, já pleiteava-se dama
daquela farsa opaca. Mas, à banheira ele sozinho, sempre .
Não era
boa ocasião olhá-lo ou
perguntar-lhe isso ou aquilo.
Leya
rumina, tenta enfrentar
aquela secura que
ela , no fiasco
dos olhos , casa
com o espelho
terceiro . Levanta as pernas e ainda
o sangue pisado nos
dois joelhos ,
ainda aquele
susto nela, ali afundado também , do momento
em que
o pai oscilou no passo
à sala , disse ou
atroz ou
sibilante o traquejo do ator ,
planou o suficiente de segundos para que ela
ocorresse em joelhos
e segurando-lhe a cabeça antes do chão. Machucar-se rente à queda do pai, por
ele. Apóia naquilo que é sangue dela o que
é volta dele, olha
olha olha
olha olha ,
incerta, amortecida, brava , pode-se perceber que houve um grito . Um grave e rouco de quem
sabe, reconhece as peripécias de um terror que se aproxima, suplica, engasga . Os cabelos
estavam perfeitamente ajeitados. Ele e os olhos .
Não podendo cuidar
do resto , Leya amaciou sua veste , quis
diálogo pôs as mãos
no bolso da camisa
do homem ido
e tirou de lá o lenço ,
sujo de ontem ,
quase o novo
se houvesse tempo para hoje. Abriu a gaveta
da escrivaninha , dezena
deles brancos e iguais .
Puxou o último , cheirou à distância
e trocou, o homem então é restaurando pelo objeto mais
cotidiano. Ainda , inútil ,
só memória ,
as mãos com
o lenço limpo ,
e disse-lhe com títulos
estrangulados, se poderia tomar o seu banho naquela banheira .
Leya que nunca .
Caminhou o corpo , velha
maquinaria da escrita ,
esforçando para retomar outra linha ao final da direita
impossível , árdua
tarefa , mantendo-se em
ziguezague na disposição dos dedos
desejosos, parece muito frágil tudo isso , muito simples .
Os outros faziam as despesas
insignificantes e taxaram hora , médico , legalidades e telefonemas
mudos . Leya direto
à água , ao legado
dos sais abejtos, ainda
uma partícula de célula
ou pó
que solidificasse os nomes , ser ela a filha , e não podendo dizer à mãe , ao pai ,
aquela situação impar
da necessidade da banheira ,
após as longas e curtas casas
paridas e falas absurdas que ela disse,
disse afoita , pediu: mãe e pai entro
no banho . Um
rosto amiúde ,
jaspe na cor ,
moita de juntas
inexpressivas, desfeitas , novas . Olha , o tempo mais , o terceiro espelho .
Tenta se levantar ,
doem seus múltiplos
joelhos , uma ossatura
roída pelo vapor ,
o tempo controlado pela
neblina . Quando
se fixa nas idéias
de desaparecimento , logo
abre mais a torneira
quente , o banheiro ,
a porta aberta
por esquecer-se, o quarto
entra no nevoeiro de si e quando
pensa, mais ainda, com obsessões, nos desaparecimentos, enjaula-se e finge e cantarola
uma música inventada com timidez. Ela aborta
a coluna rígida ,
deixa o pai
sentar-se com ela
na banheira , divide o espaço , divide-o até
o minúsculo. O desaparecimento aos
poucos, as brumas sob os joelhos. Sabe
que sangue e tempo têm tantas ocorrências , se empalharam na realidade
dessa textura , e liquidada ama aquele pai . Ama, desapareceu, ama. E não
usura mais
ser lida esferográfica e idêntica ,
toda a vida
trouxera as miudezas daquela banheira , toda
a vida que
viveu em outras casas
e estrangeira ao pai ,
em outros
pôde rarefazer a evidência
de si , prenha daquela água do pai , do
mundo absorvido do pai
e das insensatas telhas que encomendara, sem
uso , separando-a do movimento
real , da estrutura
real , da banheira de fato, esta bata arquivada de velhos
lenços , o seu
corpo branco .
Real.
Se alguém
se aproxima ela tranca ,
nenhum opressor
que lhe
dita . Faz-se horas ,
reconfigura, liga , regride, restringe,
põe a alma no jogo
dos três espelhos
e o maremoto confundir-se à vida , o teatro
parece-lhe confundido à vida ,
desaparecer vai tornando-se sacrílego criar, a vida .
Enquanto foz
daquela luz fosca
espalhada, assobiava o vapor para dentro , mexesse um pouco entre aquelas formas cansadas, e podendo, quando pôde,
entender, a banheira.
Levantou-se, três dela exageravam sua
mínima pessoa ,
a similitude das carnes aparecendo e sumindo, outras e outras, nada sendo mais
que aquilo ,
o desaparecimento . Os desaparecimentos . O pai
que morto .
Ela tão
ou mais
desaparecida dela, a brusca casca de água tolhendo
as relações, senta-se em si como uma
aldeã de um ato
primevo , quer sair, remover ,
bater braços, pernas . Nadar, mergulhar,
boiar. Agora já
sim de pé .
Escorre-se. O ralo das mordaças . Quando
sai abraça o pai ,
a mãe e a irmã. Invisível. Eles choram o
destino imprevisto. Mesmo
despercebidos dos louros que rugem nas faces
antes pardas de Leya, mesmo marcando igreja
e padre e roupas
brancas, o vestido de ataduras , não eles : eles têm funéreos lenços ,
ela que
trocara antes de tudo
o lenço sujo
do pai ele
agora suja
o novo , desesperado, resignado, preparando-se aos toques de Leya, a nova
Leya que abraça
a trindade do vácuo
e do som, e tenta , na imposição que era aquela ordem ,
que a vacina
de toda mácula se consumisse, se
exterminasse. Mas a mãe agarrando cabelos ,
quadros e bilhetes
guardados no criado emudecido,
obedecido, em luz ,
livro e revista .
A mãe procurando vocabulário. A mãe
vasculhando o corpo pequeno ,
enrugado da filha ,
o pai derrubando espelhos ,
a irmã atendendo os consolos dos que chegavam.
O
rosto retangulado, cavado branco e os olhos
tensos do vermelho ,
olhos d’água ,
desmedidos. No que boiava, a crispa da
recordação que ela
escolhera e tinha ao lado: uma carta do pai quando Leya fazia trinta anos
dizendo-lhe que preparasse a vida (era o
que fazia), explicando-lhe a causa do número – coisa divertida e séria
do pai – e um
vasilhame que
comprara neste aniversário e dentro dele os quatro
anéis dos quatro compromissos
de que ela
fugira e irando vergavam, fim . Não porque
pensara os detalhes daquela entrega. De
verdade, não queria ensurdecer a dor de ninguém com pretensa e crua sina de
despedir-se. Não preparara tanto a dureza
que era
seria o seu rosto de pedra lisa e perfeita ,
mas amando, amando o desaparecimento do pai dentro de si , da mãe , da
irmã, de si . Aquele rosto
combinando à água mais parecia um tablado de mármore
que uma acomodável bacia ,
dada a exatidão
do movimento fixo .
O que ainda
fluía em pequena
dosagem , já
quase interrompido
pelo frio e o
longínquo , eram tecidos
de sangue de seu
joelhos , de que
o pai se lembrava, tombando. Aquele vivo rubro , tom móvel de infância
e de rasantes risos ,
aquele lendo, demorando-se no lenço branco ,
costurando à memória. Leya impune, remediada. A dó
dos outros que
não desapareceram, nem desapareceriam.
Os outros mediados pela
fadiga e pela
ordem , em
meio a andar com coisas e sofrer com elas. No
passar parado das águas, enquanto não chegasse quem nela ousasse tocar, abrir e
destituir, o banho foi pintando sua homenagem plástica, numa bonança
desprogramada, comovendo demais. O vermelho atava o branco, docemente, à
sugestão contemplativa de um poente calmo. E das fugitivas mordidas e raivas do pai , mãe e outros ,
ficou ainda , como
se comprovasse com maçãs, o percurso estético
e tonal da tristeza: na água escurecendo
um tom compassado de rosa , um bendito tom de rosa , dominando o dia
dos banhos , dizendo baixo e naturalmente , a eficaz existência
da noite .
+ poemas inéditos do senda dedicada, na revista desenredos:
+ misto de poemas inéditos e publicados, na revista zunai:
+ poemas do livro fio, fenda, falésia, na revista desenredos:
+ diversos poemas avulsos, na seção 'poesia' aqui do blog: