20080826

Gitano




sulcar o caudaloso de um rio
para encontrar a haste dos cabelos
que é a dança

eu enfaixaria teus sonhos num adamascado
tendo no ombro apenas um cristal
sabendo abrir-te numa coloração negra
a ensaiar o espaço úmido
entre meu corpo e a lunação

rugas olhos pesados palmas
a bater no meio de uma tarde o calcanhar
vertebral apetite de quem é vivo

as mulheres estão todas fortes
em seus laços florescidos de azeviche
minha manhã é um caminhão encostado
nas águas, bordoada de vento
com chapéus e garrafas

sobre a cal de um tempo estanque
homens sonoros disputam
a viagem de meu nome
como um álamo de vinho
corrói
e acalanta

20080819

Antínoo I








Ao Alfredo, em sua vida

"Poderei dizê-lo: inspiro-me no que é uma força e uma terrífica fragilidade, diante da lembrança e do esquecimento"

(H. Helder, Apresentação do Rosto)




Andar a bicicleta estrelada
quando a ultrapassagem rotatória
das mãos assolando as costas
trazem a memória de seu esquecimento

Foi um grosso hiato
encardido de tempo e lama
preciso dentro da manhã noturna
daquele giro

Não estava morto ou vivo
e na vigília se desfiava
a coesão pedalada do tempo

Estava aquilo
febre de infância de outro lado
acima-dentro lacunar indício
mostrando-me fumaças
afásicas, ritual
o exercício sobre a matéria
do gostar lembrar desviar

o então-poema
lento
cheio de húmus

20080813

H. H.




ao Rodrigo Petrônio










Antes das atracadas nela mesma, eu rasteio os seus traços em mim; há subterfúgios desastrosos pois verdadeiros, que esta alarmada voz conhece e canta o fogo visto e o fogo buscado, a beleza redundada. Os refúgios da montanha, ou na planície do Sol. Os matos vivendo a não restrição, os animais aceitos como possivelmente eram dantes sonhados nas comunhões. Os álcoois e espaços largos para o nada em visita, que pode sê-lo, que pode ter a cara da morte. É a descoberta da igualdade e da semelhança com o Sem-Nome e a ruminação perdida destes hojes que não mais sabem, destes do afastamento que pode propor a linguagem com suas cidades e conveniências mas que pode além pontear o cuidadoso contato, o erótico, grotesco e a confluência deles no gesto do sublime acordo que dualizamos entre orifícios encardidos e orifícios luminosos. As entradas e saídas do corpo são reentrâncias da fera absurda e do deus mudo, resultando um imenso som de tambores em mulher com seios, expressões de fome e ternura. O contrato com essa descoberta capaz de ser o núcleo de uma realidade: meio do caminho, vermes divinizados e anjos em escarrada. Hilda escolheu seus cacos & carícias, e canta cantou. Sem nomear-se idem ou transversalmente possuída de si. Perdura a caminhada silenciosa de palavras escritas, vozes captadas dos mundos do Tártaro. Ela se anoitece e rejuvenesce em ciclos cotidianos; espreita a muralha convexa de sua imortalidade. Não a que lhe salvaguardará pelos outros que sugam sua exasperação poética, mas nela mesma, decantada e portadora de certezas que são menos conceituais que reais. Ela sobre-existirá: Vem das marés dos mundos que Hilda tangencia e borda e mergulha, sangues voltando à terra, uma mulher alardeando o mistério. Hilda são os tempos das colheitas, terra posta e sementes cristalizadas no de dentro. Não falo desta terra quando digo terra.
Eu vou descendo os seus textos, tenho a imprecisão de as vezes amaldiçoá-la de sedutora de deus, ou na verdade, a sedutora do Sem-Nome. Não sei despi-la de sua dançarina matéria e sinto também que ela pouco quer ver ainda algumas relíquias das religiões que empoeiram o corpo, o homem e a mulher. Hilda quer o corpo que tem, de jeito diferente de corpo... Ela se junta, universo neste corpo, explora os sexos como anjos, obscenidades puras e calvícies da alma, que também enjôo e dá parto. Ela pariu diferente, destrói um feminino puritano, ainda muito pelas esquinas disfarçados de deusas – e arrebata a prostituta feudal e inteligente. Não são essas. O que tem a mulher talvez de mais próprio e revelador de um poder ser está menos em tudo que em uma aproximação desmedida do nada que lhe cobre o rosto, o vazio. Mas não o existencial que argumenta; mas uma desgraça embelezada, que não tem receios de língua ou nome, e que busca um algo. Não é um querer mental ou atitude. É talvez a função da adestradora de leões: força, graça e ritmo. Coragem. Ela caça este nada tão próprio da caçada feminina da maneira mais possível: afaga o desconhecido. Não incuta-lhe o verbo, chama-o com os cabelos. Chega ao colo e chora em odes mínimas a presença da falta gigantesca. Cobre-lhe de dança o manto escuro e crê o que ouve pelas noites ruidosas os desígnios. A mulher só pode ser-se sacerdotisamente. Embutir um apelo de arritmia e outro harmônico, deixando o olhar pouco dilatante mas muito interno. E busca ainda.
Porque a Hilda se ajoelhou e teve o ardor da resposta. É uma coisas bem mesmo de mulher ter o sexo inflado para dentro quando o silêncio além reúne-se na pele e no que sai da pele. Poesia da Hilda é. A Hilda que quis o pai e quer o Pai, agora não deve mais dizer os ‘as’ e as copas pois não havendo os receptores por aqui. Não são aqui as palavras que ela tem e tinha; deve ter calcado muito no Outro, no trabalho e em refrigeração resposta nenhuma daquela gravidade cósmica. Pouco captam-na, seu recurso de receios, veste de palavras. Ela é outro homem. Esse deus que é dela, que falava... e o trabalho que teve em chegar-se nele, chegar-se nela, chagar-se nela, a Hilda me diz da solidão. E só ela não fantasia a besta: a cabeça compreende às meias taças e ela bebeu inteira, arroxeou, como é sangue este líquido todo que aeriza o nada pela Terra, ela desculpou-se – porque foi demais na beleza – mas dentro não se fodia com o que fosse o outro, este outro de pessoas dos trânsitos externos que não distinguem o igual. Ser santa não pedia olhares.

E o pai. Eles conversaram. Queria eu olhá-los juntos embranquecidos. Queria mesmo, queria muito. Aqui ainda dizem das notas e dos juncos, porcaria. Infantilizam de ‘pornográfica’ a Hilda! Juntai-me aos porcos e cadelas porque o sagrado tem bem a pata destes e foi aquecido, na luz ela tem seu encontro aos bichos e às traças. A Hilda, que fogosa desses abismos! Entretanto o deus disse para ela e ela então. Ainda o que é do Outro se perdura nos aquis do corpo terreno, porque não somos mesmo esse indivisível? Sim, mesmo em por enquanto. E nesse entanto enquanto, das torturas carregantes do amor, o encerramento doloroso só pode ser matizado pela entrega; da espera de conhecer-se mais ainda ao que é dor insuportável. A mulher que sabe amparar sua dor no sofrimento. Acolhe-o, maternalmente. As leoas infelizes do parto, contudo cuidadosas... Ainda teme-o, distancia-se: por entendê-lo tanto e tanto tê-lo - sofre, senão jamais poderia a ousada chegança inteiriça. Disso talvez o nome das bruxarias: a mulher suporta-se indo. E a Hilda “Que este amor não me cegue nem me fira” porque “Isso de mim que anseia despedida/ (Para perpetuar o que está sendo) / Não tem nome de amor (...)”. Só é permitido, a Hilda esgarça: Ter àquele que abdica. Não chamando de Amor o que (não) é. Não chamando simplesmente que assim a chama. “Como se só na morte abraçasses a vida”.
E o pai retoma, eu entrevejo, diz-lhe, à filha: “Os corvos, os corvos estão chegando, eles estão cheios de sangue”. Ela redime: “O Nunca Mais não é verdade / (...) / Nem é corvo ou poema o Nunca Mais”, ela torna pomba este corvo e margeia a morte mesmo que no medo, no medo.
Hilda tem o de lá, é a túnica corpórea que reclama ao fim, põe-se em fogo, como clamo, a Hilda. O resto que é tudo, que conhece o Sem-Nome e comunga do Nunca-Mais. “O Nunca-Mais é a fera”. Sua poesia, seu teatro, a sua prosa presenciaram a indelével voz e cantaram-na na harpa da palavra. Não nuca foi o vão, Hilda. Os que te leram nas entranhas escancaradas têm o suspiro. Os outros não te ousam. Eles não ousam a vida desta pureza santa tua.
Amarras tuas línguas mas te convenço que fluem cascatas no que te lê.
O que a Hilda borra e destaca? O que ela pertence e despede?
Aquilo que não abre a dor santificada, o amor natural, a profeta entre runas e ruínas de homens e mulheres, o martírio puro das verdades. É ao Outro deus, ‘esse’ - “Pertencer é não ter Rosto. É ser amante / De um Outro que nem nome tem. Não é Deus nem Satã. / Não tem ilharga ou osso. Fende sem ofender. / É vida e ferida ao mesmo tempo, “esse” / que me saiba inteira pertencida” – que poucos vêem. Ela é Aquela. “(...) E aquela é luz. E etérea”.
A Hilda, que deus teu? O Sem-Nome não é pátria, o deus não é caridoso. O deus comporta as feras que nas noites esverdeadas nos arregalam a gula oca. O que machuca, o deus enovelado de nojo, criação e criaturas enoveladas de esperanças beatas, o deus murcho. Também. O deus cavalo. Este sim. Os empilhamentos de sombras, o deus que menstrua, a faculdade do absinto em teus lábios franjados, o nada em minuto, as reservas aquietadas em um deus sobretudo. O tapete de cães, os ganchos das carnes, os sangues, o sangue pelas narinas, a boa mãe dolorosa. “(...) A crueldade. / Que é o som de Deus.” Hilda entrou silenciosa nos terreiros. Não quis a percepção. Que sendo tida teria visto o maremoto vermelha, então foi cautelosa, assim. Para Hilda o fruto não foi proibido.






...


(escrito há tempos, decantado numa substância de penumbras, entre os guardados, a flecha riste que não me cessa, a Hilda)






I
Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.
Antes, o cotidiano era um pensar alturas
Buscando Aquele Outro decantado
Surdo à minha humana ladradura.
Visgo e suor, pois nunca se faziam.
Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo
Tomas-me o corpo. E que descanso me dás
Depois das lidas. Sonhei penhascos
Quando havia o jardim aqui ao lado.
Pensei subidas onde não havia rastros.
Extasiada, fodo contigo
Ao invés de ganir diante do Nada.






(poema do livro Do desejo)

20080812

Pessoana / o longe e o Longe


(A Nave, de Sérgio Lucena)

HORIZONTE


Ó mar anterior a nós, teus medos
Tinham coral e praias e arvoredos.
Desvendadas a noite e a cerração,
As tormentas passadas e o mysterio,
Abria em flor o Longe, e o Sul siderio
Splendia sobre as naus da iniciação.

Linha severa da longinqua costa -
Quando a nau se approxima ergue-se a encosta
Em árvores onde o Longe em sons e cores:
E, no desembarcar, ha aves, flores,
Onde era só, de longe a abstracta linha.

O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensiveis
Movimentos da esperança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A arvore, a praia, a flor, a ave, a fonte -
Os beijos merecidos da Verdade.

(Fernando Pessoa. in Mensagem. Obra Poética. RJ: Ed. Nova Aguilar, 1998)

20080811

Elêusis / morte e culto de Antínoo

[trecho]



(Antínoo como Osíris)


"(...) Desci os degraus escorregadios: Antínoo estava deitado no fundo, já mergulhado no lodo do rio. (...) Tudo desmoronava; tudo parecia extinguir-se. O Zeus Olímpico, o Senhor de Tudo, o Salvador do Mundo aluíram; de repente, existiu apenas um homem de cabelos grisalhos soluçando no convés de um barco.
(...)
Dois dias mais tarde, Hermógenes consguiu fazer-me pensar nos funerais. Os ritos de sacrifício que Antínoo escolhera para cercar sua morte mostravam-nos o caminho a seguir: não por acaso a hora e o dia de seu fim haviam coincidido com a hora e o dia em que Osíris descera a seu túmulo.
(...)

Tive, nesse ano, com a sacerdotisa que outrora me iniciara em Elêusis e cujo nome deve permanecer secreto, vários encontros nos quais foram fixadas, uma a uma, as modalidades do culto a Antínoo. Os grandes símbolos eleusinos continuavam a destilar para mim uma virtude calmante: o mundo talvez não tenha nenhum sentido, mas se tem algum, este exprime-se em Elêusis, mais sabiamente e mais nobremente do que em qualquer outro lugar. Foi sob a influência dessa mulher que empreendi fazer das divisões administrativas de Antinoé, dos seus demos, das suas ruas, dos seus blocos urbanos, um plano do mundo divino ao mesmo empo que uma imagem transfigurada de minha própria vida. Tudo entrava nesse plano, Héstia e Baco, os deuses domésticos e os da orgia, as divindades celestes e as de além-túmulo. Coloquei ali os meus antepassados imperiais, Trajano, Nerva, transformados em parte integrante desse sistema de símbolos. Plotina também encontrava-se lá; a boa Matídia estava assimilada a Deméter; minha própria mulher, com quem eu entretinha nessa época relações bastante cordiais, figurava no cortejo de pessoas divinas. (...) Esse local triste tornava-se a paisagem ideal das reuniões e das lembranças, os Campos Elísios de uma vida, o lugar onde as contradições se resolvem, onde tudo é igualmente sagrado.
De pé diante de uma janela da casa de Arriano, por uma noite semeada de astros, pensava na frase que os sacerdotes egípcios haviam mandado gravar sobre o ataúde de Antínoo: obedeceu a uma ordem do céu. Era possível que o céu nos impusesse suas determinações e que os melhores entre nós as ouvissem lá onde os outros homens só percebem um silêncio esmagador? A sacerdotisa eleusina e Chábrias assim acreditavam. Teria querido dar-lhes razão. Revia em pensamento aquela palma da mão alisada pela morte, tal como a vira pela última vez na manhã do embalsamento; as linhas que me haviam inquietado outrora desapareceram, como acontece nas tabuinhas de cera de onde se apaga uma ordem cumprida. Mas essas altas afirmações iluminam sem aquecer, como a luz das estrelas, enquanto a noite em volta é ainda mais escura. (...)"



(Vila Adriana - Tívoli)


"Natura deficit, fortuna mutatur, deus omnia cernit"
(A natureza nos trai, a sorte muda, um dêus vê do alto todas as coisas)
[escrito num anel de Adriano]

(YOURCENAR, M. Memórias de Adriano. op.cit. pps 170-171; 206)

20080806

Gabriel Kolyniak / No absoluto o olho se contrai / Eclipse

viver:

A FORMA DO TEMPO É A FORMA DA TERRA











ECLIPSE
Ao Gabriel


Preciso olhar
entre essas colinas teu ombro
lugar de coelhos silvestres
e periferias, o que anula
e assistir ao teu ato de amor
em outro corpo macerado e preciso

As fugas salubres dos papeis
preciso vê-las, as palavras
tomadas da mistura tua
com outra pele o diáfano
de outro plexo ainda longe
das memórias coaguladas.

Sob o calcário das vestes
Imerso lentidões de água
o vácuo tonel dos polegares
tuas mãos

Velar teu esgar
preciso
em outra carne
que esta das enxergas
podada e dos pântanos
do gesto

Preciso
como te soltas de uma ratoeira
onde os pedaços da morte
amontoados
olham

20080805

Elêusis / Memórias de Adriano

[trecho]


"(...) Dezoito meses mais tarde, fiz-me iniciar junto a Elêusis. A visita a Osroés tinha marcado, em certo sentido, uma mudança na minha vida. Em vez de voltar para Roma, decidi consagrar alguns anos às províncias gregas e orientais do império: Atenas tornou-se cada vez mais minha pátria, o centro do meu universo. Empenhava-me em agradar os Gregos e também em helenizar-me o máximo possível; essa iniciação, motivada em parte por considerações políticas, constituiu, entretanto, uma experiência religiosa sem igual. Os grandes ritos não fazem mais do que simbolizar os acontecimentos da vida humana, mas o símbolo vai mais longe que o ato, explica cada um dos nossos gestos em termos do mecanismo eterno. Os ensinamentos recebidos em Elêusis devem permanecer secretos: aliás, suas probabilidades de serem divulgados são muito poucas, devido à sua natureza inefável. Formulados, não iriam além das evidências mais banais; nisso consiste justamente sua profundidade. Os graus mais elevados que me foram conferidos em seguida, durante conversações privadas com o Hierofante, não acrescentaram quase nada ao impacto inicial experimentado pelo mais ignorante dos peregrinos que participa das abluções rituais e bebe da nascente. Tinha ouvido as dissonâncias resolverem-se em harmonias; apoiara-me, por um momento, sobre uma outra esfera, contemplara de longe, mas também de muito perto, a procissão humana e divina onde eu tinha o meu lugar, esse mundo onde a dor ainda existe, mas não mais o erro. O destino humano, esse vago traçado no qual o olhar menos exercitado reconhece tantas faltas, cintilava como desenhos no céu.
Aqui convém mencionar um hábito que me atraiu, durante toda a minha vida, a caminhos menos secretos que os de Elêusis, mas que acabam por lhe serem paralelos: quero falar do estudo dos astros. Fui sempre amigo dos astrônomos e cliente dos astrólogos. A ciência destes últimos é incerta, falsa nos detalhes, talvez verdadeira no todo: já que o homem, parcela do universo, é comandado pelas mesmas leis que presidem o céu, não é absurdo procurar lá em cima os temas das nossas vidas e as frias simpatias que participam dos nossos êxitos e dos nossos erros. (...) Inclinava-me a acreditar, como alguns dos nossos sábios mais ousados, que a Terra também tomava parte nessa marcha noturna e diurna de que as santas procissões de Elêusis são, quando muito, o simulacro humano. Num mundo onde tudo não é mais que um turbilhão de forças, uma dança de átomos, onde tudo está ao mesmo tempo em cima e embaixo, na periferia e no centro, era difícil conceber a existência de um globo imóvel, de um ponto fixo que não fosse simultaneamente móvel. Outras vezes, os cálculos da precessão dos equinócios, estabelecidos outrora por Hiparco de Alexandria, tornavam-se uma obsessão em minhas vigílias noturnas: sob a forma de demonstração e não mais de fábulas ou de símbolos, encontrava neles o mesmo mistério eleusíaco da passagem e do regresso. A Espiga da Virgem já não se encentra mais, nos nossos dias, no mesmo ponto em que a carta de Hiparco a assinalou, mas essa variação é a conclusão de um ciclo, e o próprio delocamento confirma as hipóteses do astrônomo. Lentamente, inelutavelmente, o firmamento voltará a ser o que era no tempo de Hiparco, e será novamente o que é no tempo de Adriano. A desordem integrava-se na ordem; a transformação fazia parte de um plano que o astrônomo era capaz de captar por antecipação; o espírito humano revelava aqui sua participação no universo pelo estabelecimento de teoremas exatos, tal como em Elêusis pelos gritos rituais e danças. O homem que contempla e os astros contemplados rolavam inexoravelmente em direção a seu fim, assinalado em qualquer parte do céu. Cada instante dessa queda era um tempo de parada, um ponto de referência, um segmento de uma curva tão sólida quanto uma cadeia de ouro. Cada deslizamento nos conduzia ao ponto que nos parece o centro do mundo porque, por acaso, nele nos encontramos".

(YOURCENAR, Marguerite. Memórias de Adriano. SP: Folha de São Paulo, 2003. pp. 126 -129)


Adriano (76 d.C - 138 d.C) Papoulas crescendo nas ruínas de Elêusis


20080804

Carta ao Fernando



(tirado do baú para o afago de um amigo)


Os amores estão sempre no atraso
não conhecemos
a sua substância íntima e as mãos que
se dão se reclamam
(a intimidade o recheio da morte
o amor aquilo em solidão)

Talvez o grunhido arrebatador nos conduza ao centro
da terra e lá
esfomeados
saciaremos o verso no contato já sem vida

talvez o desalinho da memória possa viajar
o corpo
às imagináveis vertigens e lá
virgens nos desfiaremos em gozo a ausência do toque

O amor é sempre passado
futuro
alto penhasco entre a rua que agora
ilhada e suspensa
na espera nos respira

Nossa areia escorre
a ampulheta é fosca debaixo de nosso teto
nós estamos sentados onde nascemos

Lembrar o desejo pronunciar a palavra
fria é ainda a possível evidência
da filigrana não rompida
quando o amor se atrasa