Para o Marcelo, que dorme ao meu lado
o homem é arcaico na morte
no gesto de se deitar para ela
no gesto de nada escolher
azuláceo o elo a caixa sonora da noite
em que fumega a imagem dos variantes passados
muge em curvas ornando a cabeça
o animal que espera sair
solto para dentro da noite
o homem recebe a cornucópia sobre a face
galopa com chifres a sua mata cerrada
já sabemos que o animal é inconfundível
sabemos que segue por vontade própria
sentimos a máquina a pessoa do animal
tão densa e estranha a agilidade em que sabemos
a razão surpresa dentro dele
uma coruja então
com duas esmeraldas
acende o cortejo noturno
águas do sonho azuláceo
mata lunar
fragrante limo
a cheia dos véus
que sorve o espelho
à corola das vezes
na memória
quantos tons a imagem amorosa da lua
quantos semitons até toda desnuda
a raspar suave o visível
de reflexo em reflexo
o torso da lua
torna à água
e à noite torna
o rosto da amante
perdida a arder
no intocável
dia
até que pedras
brancas pedras
ressurgidas no ancoradouro
o leito da noite
o talhe semblante da coruja
aquela agora que sem olhos
chora
um rito antigo
nas bordas de pedra e areia
do que ficou do amor
uma fotografia
iluminado em branco
iludido o reflexo
passam fantasmas
ofertados da fantasia
ofertados do milagre
o amor de uma sacerdotisa
por um peixe esse amor
a mesma sequência de véu
e entrada
o mesmo caminho do corpo
em flutuação e destino
todas as jóias são deitadas
no lodo claro e transparente
de morrer e boiar
a imagem de uma enorme ostra
encosta-se no beco de quem assiste
a posse dos elementos
brotar da boca
extática posse por um peixe
fico cega novamente por amor
as metamorfoses
as ninféias
a pérola mínima de recordar
de cor a preparação
de água tão pura
toda morte documenta
acidental, indelicada
uma janela com água ao lado
todo num afogamento para deixar
apenas a vida
dar a volta ao êxtase
corrosivo êxtase, a busca
dos amantes
dizermos: o alarido de tulipas
uma betúnia mourisca
pingentes aflorando sóis
e som de gravetos articulando
a chave de dois corpos
a gruta fende a noite em duas
entra-se pelo guardado
estreita pele de passagem
a boca sagrada dos amantes
ela retém fechados os olhos
sabe que fechá-los ajuda o silêncio
aberto pelo lábio ao homem que o percorre
todos os seus ossos
caverna-caveira
e estrela nas estantes de pó
que somaram o tempo à terra
este será o céu
do teu retrato –
aqui te deitarás
neste segredo da terra
onde o perfil do carneiro
entalha o começo
depois, há o escuro e a vida da água
elêusis, como duas pedras
– alguém se lembra
elêusis, está aqui o sopro
que em tempos alardeou
tuas imagens
abertas e cegas
tuas luas imensas
despeja agora o tempo
de amar a noite
nasci aqui, outra voz
adormecidos do sol, a grande boca
de um dinossauro opera a escolha
do ângulo em que dizer a partida
depois ele reaprende como galgar superfícies
há cipós e sabres dentro das juntas
e meu rosto está desenhado nesta areia
a mesma areia em que deixei o corpo
é uma luz a fatia dos versos
que dar nas mãos dos vivos
é uma luz, como um cinema
para todo contato estar banhado de abundância
é que toda a partida se fundiu de canto e ouro