20120822

FEMININA _________ poema de Mário de Sá-Carneiro




... há desses dias sonsos, em que se acorda maltrapilha para a rotina e tudo parece querer forjar culpas e tremeliques e coisinhas ressentidas, nesses dias por acaso ou sem querer, rói-se as unhas e demora-se para tomar banhos ou limpar qualquer coisa já limpa do corpo...

... bem, quando eu acordo assim, corro pro Mário...

... e quando o assim agita-se mais grave e nebuloso, só me salva este poema, abrindo um jocoso sarcasmo como técnica com que rir de si mesma e dessa lenga-lenga de suíte sentimental..

... ay ay ay...


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FEMININA


Eu queria ser mulher para poder me estender
Ao lado dos meus amigos, nas banquettes dos cafés.
Eu queria ser mulher para poder estender
Pó-de-arroz pelo meu rosto, diante de todos, nos cafés.

Eu queria ser mulher para não ter que pensar na vida
E conhecer muitos velhos a quem pedisse dinheiro –
Eu queria ser mulher para passar o dia inteiro
A falar de modas e a fazer potins – muito entretida.

Eu queria ser mulher para mexer nos meus seios
E aguçá-los ao espelho, antes de me deitar –
Eu queria ser mulher para que me fossem bem estes enleios
Que num homem, francamente, não se podem desculpar.

Eu queria ser mulher para ter muitos amantes
E enganá-los a todos – mesmo ao predileto –
Como eu gostava de enganar o meu amante loiro, o mais esbelto,
Com um rapaz gordo e feio, de modos extravagantes...

Eu queria ser mulher para excitar que me olhasse,
Eu queria ser mulher para me poder recusar...
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Paris, fevereiro de 1916


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Leia aqui trechos de cartas de Sá-Carneiro a Pessoa, logo antes do suicídio deste fabulosíssimo poeta português: http://eleusiana.blogspot.com.br/2012/04/sa-carneiro-mario-em-cartas-ao-fernando.html



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