não vou caprichar nas palavras.
vou escrever simplesmente, no ritmo do meu engasgo. acabo de deixar o cinema,
vi finalmente o filme Amor. estou triste e bem brava, bem
brava, sabe? escuto as pessoas indignadas com a velhice ao final, com a morte
ao final, descendo as escadas do cinema, as pessoas assustadas com o quê?, com
aquelas cenas completamente esperadas de dois corpos velhos.
não entendo porque tanto incômodo
com isso, tanta indignação. o que me embrutece, entristece e enjoa ao ver o
filme é a falência completa da família
nessa cultura nossa que só respeita e enaltece o tempo do individuo adulto
(independente, produtivo, trabalhador) que não pensa na morte, que esquece que
é mortal, que faz de tudo para se ‘proteger’ da morte.
não entendo. acho egoísta, acho
pobre, acho bruto demais. esse casal concentrado em si mesmo, como tantos
casais. sim, isso é um desabafo, uma carta até, não é comentário de cinema,
estou engasgada. é tristíssimo assistir a esse ato dessa maneira, isolado no
desamparo (a velhice e sua decorrência natural, a morte) quando toda a passagem
e despedida, sim, podiam ser solares, calorosas, vir acompanhada, vir em festa.
a morte não tem porque assustar, mais do que assusta, a qualquer um, em
qualquer idade e qualquer tempo. eu fico enraivecida com a falta de preparo para
ela, uma carência cultural, essa existência rasa, amedrontada, protegida, que
não se entrega. as pessoas, muitas vezes, só elaboram de si mesma aquilo que elas
‘fazem’, e entendem isso como aquilo que elas ‘são’: a profissão, o
reconhecimento adulto, o festejo da virilidade de um nome, a beleza, a
possibilidade de ser independente e de deixar atrás de si um rol de feitos
(vazios) (estátua, nome de rua, nome de nome).fico enraivecida porque a filha
ali, no filme, podia ser a filha que eu fui criada para ser, a filha que vive
‘sua própria vida’, a filha lindamente solta no mundo, desde cedo, como se
partilhar intimidade e tempo em família fosse um peso. e é.
é isso. ainda vivemos esse ritual
apodrecido de famílias que foram geradas lá quando família era um negócio, quando
casamento era um acordo de propriedades (será que estou falando do passado?). só
estou falando obviedades, mas também quem já está cansado disso tudo, que
não leia. essa noção de família (que
ainda é a noção praticada pela maioria, inclusive pela ‘família’ do filme –
incluindo aí o ex-aluno de piano) sempre foi algo completamente falido, triste,
que causa vergonha. ‘amor’ é só a obrigação didática que acompanha essa ‘família’.
e dentro dessa vivência da ‘família’, quando envelhecemos ‘damos trabalho’,
assim como quando somos criança. esses dois tempos são tempos lacunares, a
verdadeira hora do sujeito é a sua hora adulta. isso não é novidade pra ninguém.
isso me entristece demais.
será que tem ser assim? penso na
família como uma coisa muito mais forte que o sangue & a obrigatoriedade do
sangue & a pronúncia oca e habituada do ‘amor’. essa ‘família’ que vem
acompanhada dos epítetos ‘tradição’ e ‘propriedade’ só me causa nojo, porque,
claro, é totalmente desprovida de afeto, e quando eu digo afeto não estou
dizendo da encenação de jantares e pequenas perguntas de ‘como vai você’.
afeto é intimidade, afeto é ausência de tabu,
afeto é poder abrir o punho e o grito, dizer de tudo, afeto é poder entender o
tempo, acolher o tempo, afeto é colheita. e é isso, é essa família, ausente,
que me deixa desamparada, ao ver o filme. essa é a falta. falta do outro. sim,
porque o casal ali é quase um só, quase uma coisa só. não há ‘o outro’ ali, não
há.
meu corpo vai envelhecer. vou perdê-lo
de pouquinhos. ou de uma vez. de algum modo. penso nisso quase diariamente. na
morte, sim, penso diariamente. posso morrer sem estar velha. é bem provável que
aconteça assim, eu sinto isso, que não estarei tão velha quando partir. mas
adoraria envelhecer. me preparo para isso, penso nisso, procuro ser atravessada
por isso. e isso não significa falir, perder, ‘dar trabalho’. não. eu me quero
velha, bem velha, do jeito-velha que estiver, um dia, mas com a casa cheia, e cheia
porque cheia naturalmente.
cheia de família, e isso é, cheia
de gente íntima, os amigos vivos e velhos que estiverem melhor na velhice do
que eu, os filhos ou sobrinhos ou quem quer que esteja próximo, fora ou dentro
do sangue, sangue não é nada, não significa nada, embora a gente aprenda a
chamar de ‘família’ justamente estes, estes que na maioria das vezes, não
estarão lá, porque não têm a menor intimidade contigo. isso é triste. as
pessoas se casam, tão rápido, fazem filhos, enchem a casa, provam ao mundo a
idiotice do costume, repetem satisfeitas de que ‘os filhos são do mundo’.
ninguém é de ninguém. mas todos podem se partilhar, se não houver obrigação
disso e, ao contrario, houver prazer, prazer coletivo em se conviver.
família não é uma coisa que vc reivindica ao final. família é algo que
se cultiva, ou não se tem. repito: eu não estou falando apenas do sangue.
quero envelhecer e festejar minha
partida, a naturalidade de minha morte. quero poder ouvir histórias, conhecer
meu corpo idoso, quero saber que sou amada e que minha morte não será uma perda
para ninguém, mas um convívio outro, diferente, um rito que se faz ainda dentro
da vida, com carinho, com intimidade, com pessoas celebrando-a. quero poder
experimentar ainda um pedaço de bolo de chocolate, ver muitas fotografias se
puder abrir os olhos e principalmente ouvir riso ao meu redor, não um riso que
disfarce a minha passagem, o meu corpo ou o secreto terror-maravilhoso de estar
prestes a mudar. penso que cultivar uma família é cultivar dia-a-dia nossa
velhice presente e futura, nossa adolescência presente e futura, nossa infância
futura e presente. é cultivar o tempo, a intimidade com o tempo, a naturalidade
obscura misteriosa e sim, assustadora, de tudo.
minha avó está hospitalizada,
velhinha. Há uma auxiliar de enfermagem com ela, lá no hospital. tenho ido
visitá-la, mas não tanto. é estranho, é natural para mim ir até ela, mas não
tão natural. é como se de algum modo fôssemos estranhas e que tenhamos ficado
‘estranhas’ porque alguma intimidade foi perdida ou nunca foi conquistada. nas
horas abruptas, isso se esclarece: a relação, e o que cada um pode ou não pode
dar ao outro. o quanto se cultivou e o quanto se ignorou. não me sinto culpada,
mas me sinto triste com isso. com essa quase indiferença, mesmo que não seja
indiferente. a maneira como ela recusa a idade e a maneira como os próximos
reagem também entristece. E também não é culpa dela, é claro. não há culpas. há
o que há. a história de cada família. isso tudo é resultado de uma compreensão
de mundo da cultura em que ela viveu (e nós também) e viveu bem. uma cultura
que só vê valor no corpo perfeito, saudável, produtivo. uma cultura que
desconsidera o idoso e a criança. e uma cultura que desconsidera o idoso e a
criança é uma cultura que não sabe morrer, e que por isso, encena em desolação a
própria morte numa solidão sufocante, com quem sabe, se tiver sorte, apenas um
companheiro do lado. mais ninguém.
eu combato muito diariamente a
força dessa cultura ‘familiar’ que há dentro de mim. combato, questiono, sinto
raiva, tento entender como virar essa chave. não tive filhos ainda. não posso
simplesmente pôr no mundo, largar em um mundo, uma pessoa. tenho que, sim, estar
disposta a essa constante busca de uma intimidade incomensurável, com o outro.
não me interessa um mundo em que o amor não seja, ao menos, tentado. e tentado
pra valer. quero ter a intimidade de uma família que fala da minha e da sua
vida. quero a intimidade de uma família que saiba celebrar a minha morte,
quando ela se aproximar. não como uma coisa fúnebre. não como quem discute
heranças e bens. não como um disfarce. nada disso. como uma naturalidade
perfeita, cheia de som e de fúria, cheia de assombro e esperança, abrindo um
espaço de partilha para além disso tudo: agora, no presente, neste exato agora.
2 comentários:
não assisti - o que aliás eu assisto se não são vcs?!
mas, puxa, disse muito.
quando uma poeta escreve prosa clara no lugar de versos, sei que a coisa pegou. e tem que vir o papo reto pra dizer.
gostaria de fazer um pedido ao destino
- que possamos envelhecer juntas.
Uma saudação da ctônica Nanã!
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