20101030

notas à Mostra, X


notas à Mostra, IX


notas à Mostra, VIII


notas à Mostra, VII


notas à Mostra, VI


notas à Mostra, V


notas à Mostra, IV

Circuncisão

A Cru desde

Sempre

algemado desejo ?

à força toda infância à faca

sem explicações, Alá

é grandioso

os tapetes não são para proteger do frio

a noite é um cortinado de areias

a banir

o luxo rosa-fúcsia

das tendas

fora: pobreza, poeira

pouca gota de claridade ou água

fora das túnicas do azul topázio

quase disfarçassem mesmo tingissem

a tonalidade ocre daquele destino

circunda o silêncio quente das cabras

a espera do homem que se foi sem palavra

apenas um grito alto

e aquela expressão que jamais

cederá ao consolo

galinhas, cabras, gato, o crescente lunar

tudo espalha-se no deserto

mas nenhuma fantasia

nenhuma lira

apenas: sobrevivências

no cenário sem cenas, o desfalque dos restos

pés e mãos adornados com barro

enfeites para a proibição do rosto

corpos encapsulados como se já estivessem

embalsamados

armados

dos pés à cabeça

apenas mão e pé à mostra

num parco enfeite

que aos poucos se dissolve

em pequenos extermínios

é no chão que se dorme,

mas onde é que se sonha?

há o marasmo triste no destampado das mulheres

outra vez, como se já fossem suas próprias

múmias

há uma memória das dores de Espanha, as dores de Marrocos

óculos escuros nesta mínima gente do Saara

todos ali nascidos presos a uma tina de sangue

e memória

dedos-de-poente, um caminhão, um outdoor

podem ser o início da curva –

um assombro

de escapar

as crianças decapitadas e alegres

puras como qualquer criança

saem todo ano para desfilar qualquer bandeira

cantando, bebês, “corte a cabeça

dos nossos invasores”, enquanto

as mães riem um riso não satisfatório

ao fundo, cabras se alimentam de caixas de papelão

e pessoas se alimentam dos leites dessas cabras

adoecer é apenas um detalhe

para quem vive foragido

20101026

notas à Mostra, III



3. Nostalgia da luz, (FR/ALE/CHI). Dir. Patrício Guzman. (doc)



É tão impressionante ver, tatear, o antigo parentesco existente entre Saturno e Urano, conforme suas leituras astrológicas. E o deserto do Atacama pode ser um desses lugares de experimentação da arcaica lei hermética: “o que está acima é como o que está embaixo”. No plaino do deserto, homens cientistas revêem a origem das estrelas. No mesmo plaino, mães e irmãs, mulheres, procuram restos de ossos de seus filhos e parentes, assassinados por Pinochet e escondidos em retalhos sob aquelas areias. Saturno: memória, tempo que resiste, tempo que conserva. O trabalho árduo dessas mulheres de Calama, essas resistentes que não ousam deixar o tempo seguir em frente, não antes do passado ser bem enterrado, em sua dignidade de não ser esquecido. Bem enterrar o passado é não esquecer-se dele, é levantá-lo às estrelas, alçar um ponto luminoso a dor, só assim se dissuade o fantasma de todo o horror poder ter sido em vão. Nenhuma brutalidade pode ser vã, e por isso, mesmo 30 anos depois daquelas perdas, essas mulheres seguem diariamente para o Atacama e buscam pistas de pequenos pedaços de ossos espalhados pelo areal. Ao lado, ao mesmo tempo, diz um cientista: “não existe o presente”, ou seja, ele mostra: o tempo de percepção de uma ação vem em atraso, milímetros de segundo depois do gesto, então, o próprio gesto de dizer ‘sou’ e de tocar-se acontece sempre deslocado para trás, num átimo de segundos. E diz mais: não há gesto presente. Em relação às ações, tudo é passado. Se há presente, é apenas em nossa consciência, em nossos sonhos, em nosso material imaginário. Olhar as estrelas é uma espécie de transgressão desse hábito de nos pensarmos no presente. Ali, o que se vê, são corpos celestes mortos muitos, muitos anos atrás. E nosso olho humano vê a nu um passado de mil anos. No documentário Nostalgia da luz estas duas visadas se entrelaçam, formando a corda tênue da vida, essa combinação de um passado arcaico feito de pó estelar com esse passado humano feito de dor e ameaças de apagamento. É por isso que olhar para trás não só é amparar a transitoriedade de nossa experiência num grande bailado fora do tempo, como é também não deixar que a dissolução da memória faça de nós seres sem lugar. E outro cientista diz: a morte dos corpos estelares joga no espaço uma chuva de cálcio, e é esse o cálcio que está em nossos ossos. Cálcio que também está nos corpos torturados e perdidos, lançados ao deserto, cálcio que faz das mulheres que os procuram imensos monolitos da dignidade infatigável por justiça. E a dignidade humana é o lugar maior da beleza: o tempo é sempre outro. Saturno se enamora de Urano, a estrutura mais dura do nosso corpo é feita da mesma matéria que as estrelas, o nosso tempo de ontem e a nossa dor que nos levanta são também gestos de um tempo outro, um tempo fora do tempo, em que há muito gira e canta os mistérios da similitude. Aqui na terra como no céu, braços dados de contemplação e luta, de história e infinito.

TEMPO E PACTO

roldanas ancestrais,

noras de aço e geometria

preciso grau, grão

a girar fagulhas de estrela

e guardar

poeira tão luminosa

como se se visse aberto

o fundo do oceano

dentro dos olhos

nas sombras especulares dos pequeninos brilhos

transitórios, a caravana de poucas mulheres

todos os dias

abrem o livro insone do passado

com seus próprios traços de areia e vento

estamos sempre a repassar o passado

a deixar que não afundem nestas dunas

duravam as inscrições arcaicas

ritos fúnebres, é isto

a pedra do presente?

o passado mais próximo está encapsulado

cemitério que absorve seco a errância areia adentro

gravita sua própria dimensão de pó

conserva intacto o triturar dos dentes

nas ruínas de um campo de concentração, em Chacabuco

os ossos espalham sua vigília pela noite

mães investidas de pá e transparência

buscam sobras de seus amores

buscam há mais de 28 anos

(todo um ciclo de Saturno)

e não desistem, não deixam que

o obscuro

lhes roube aquela verdade

e dizem, gastas, já idosas:

são necessárias as arqueologias dos massacres

só assim nossos ossos

terão sido

ossos

estelares

20101024

notas à Mostra, II




2. Mistérios de Lisboa. Raoul Ruiz



Em 266 minutos de intenso mergulho no século XIX, o impressionante folhetim de Camilo Castelo Branco é levado com maestria às telas do cinema. Todos nós saímos vertiginados da sala escura, após essas 4 horas e tanto de viagem a um tempo outro. È mágica a sensação de que podemos nos deslocar, com o cinema, para um tempo, um ritmo e uma qualidade de hábitos e sensações extremamente diferentes, e nesse filme, as horas prolongadas valem a pena, porque fazem durar em nós o arcabouço desse passado que se visita. Esquecemos que, hora dessas, sairemos dali, ouviremos barulhos do shopping-center, estaremos na rua Augusta num sábado à noite. Fico pensando que isso é magia, de fato. E quanto é mais intensa do que as experiências 3d, os parques de diversão supersônicos. Tudo é muito bem arquitetado, a magia está aí exatamente: o diretor não deixa um fio solto, é de uma sutileza de detalhes que te convencem mesmo a participar daquela grandiosa encenação. Não é para olhar de fora, não é brechtiano. O foco narrativo dos folhetins não é para isso, vide as novelas de nossos dias. É o grande show da vida cotidiana, com seus ritmos, seus dramas (aumentados, obviamente), seus mimos. É feito para cativar, para convidar o leitor-espectador a ouvir os segredos daquelas personagens. E de repente, tudo aquilo que nos causava estranheza – afinal, como disse a Lili, minha amiga, ao meu lado: “O século XIX é bizarro”, e era o que eu não parava de pensar – começa a ficar habitual, efeito vitorioso da longa duração da viagem. Se estranhamos os costumes daqueles nobres empolados, com mil protocolos para cada gesto, e um enfado de plumas a cercar um simples levantar de xícara, com o passar do tempo nos parece já sabermos ‘aquele’ modo de vida, enfim, saímos da recepção da estranheza e mergulhamos no tecido bizarro daquele mis-en-cene. Bizarro é uma palavra boa. Independente da mão do diretor e de suas ‘liberdades poéticas’, e da possibilidade de todo e qualquer tempo ser ‘bizarro’, o século XIX o é mais, para nós, talvez porque tenhamos visto os farelos remanescentes, as sobras, daqueles comportamentos de corte, daquela teatralidade rococó chegar até nossa sensibilidade. Nós rimos deles, das personagens. Acho que é porque tendemos a rir, hoje em dia, de gestuais românticos ou decadentes, enfim, desconfiamos, com humor, desses excessos. Para nós eles se parecem, todos, crianças grandinhas brincando de salão. Entre um tédio, um segredo e um contrato de salão, todos envelhecem dramaticamente, mas não se tornam adultos. Apenas aquelas personagens que assumem o desvio, por meio da culpa, do vexame ou da impossibilidade de continuar naquele mundo (da nobreza e das regras de comportamento), e acabam indo para igreja, é que parecem, de alguma maneira, ganhar um ‘sabor’ de maturidade. É bonito isso, porque já anuncia o grande plano contextual de fundo deste enredo: a derrocada do Antigo Regime e a ascensão definitiva do modo de vida burguês. As personagens são daquele rol de categorias hierárquicas que compõe a nobreza: condessas, viscondessas, marqueses, condes... Enfim, o destino desses pobres seres humanos é traçado desde o berço: se és 1º filho e varão, ficas com o nome e a herança. Se és 2º filho ou mulher, ficas com a carreira militar, no primeiro caso, e a necessidade de um casamento arranjado e frio, no segundo. Muitos desses ‘segundos filhos’ acabam no mesmo lugar: na igreja, no convento. Enfim, banidos, mesmo, do burburinho irritante da vida de corte, encontram uma certa paz resignada no silêncio do claustro. Se as personagens vivem suas histórias de paixão e de morte, o mais belo do filme, como já se disse, está na maneira como o século é mostrado, muito, muito sutilmente, com uma espécie de construção espetacular cujo efeito é o de uma ‘naturalidade’ mimética impressionante. O que vemos, ao fundo e ao largo dessas histórias desgraçadas (lembremos que o autor foi romântico, e ainda, do signo de peixes!) é a passagem de uma época. O filme começa citando o contexto das revoluções liberais portuguesas, quando a corte insatisfeita com o estabelecimento de D. Pedro no Brasil, auxilia o irmão do infante, D. Miguel a reforçar o estatuto monárquico-colonial em Portugal. Isso tudo em meio à pressão de frentes liberais que querem estabelecer uma nova constituição, liberal, no país. Somando-se à crise interna, o contexto das invasões napoleônicas, uma Europa que experimentava agressivamente uma transformação e tentava, por reação, reforçar os estatutos feudais sobre os quais ainda repousavam as monarquias e as nobrezas. O que já não era mais possível. A comunicação e o enriquecimento da Europa, proveniente do sucesso (do ponto de vista das metrópoles) colonial, acabara por levar esse mesmo sistema ao seu cansaço, criando uma categoria sócio-econônimca de peso que serão os futuros ‘self-made man’, gente que não precisa mais vir ‘da nobreza’ ou ‘descender de cima’ para ter e comprar as regalias e os contatos anteriormente apenas disponíveis, na legalidade dos hábitos e costumes, aos nobres. É assim que uma figura central da trama, um capataz do Marquês, capataz assassino e rude, irá, por meio de sua agilidade e esperteza, transformar-se num pirata infalível, e através de seus roubos, comprará palacetes e conviverá, nos salões e na cama, com as damas da alta sociedade. Inversamente, formando um eixo de ‘X’ à narrativa, enquanto o capataz ‘burguês’ acende socialmente, o Marquês, seu antigo e poderoso patrão, acaba os dias na mendicância. É interessante o não saudosismo do filme, a perspectiva não atulhada de ‘tristezas’ por conta do fim daquele mundinho aristocrata. O que se mostra, pelo contrário, é a avidez, a ignorância e a mesquinhez de todos ali, de como se partilha por igual um certo ‘fazer parte’ de tudo aquilo, de como se o jogo fosse para todos, e ao final, independente da pose e do garbo, o que conta é jogar bem. Nisso lembra bem o clima do Ligações Perigosas, se bem que ali esteja mais focado o prazer cruel dos aristocratas entediados. Aqui, nestes anos de 1800 adiante, a mistura social já é bem concreta, já não se pode mais simplesmente dividir este daquele por meio das aparências. Como se vê, algumas personagens trocam de nome e de história diversas vezes numa mesma vida, e a arte de virar a casaca é uma arte de sobrevivência, para essas figuras meio marginais da nobreza, gente que não está no topo nem abaixo, mas que flutua numa faixa intermediária em que vence a astúcia e a atenção aos segredos dos outros. Tudo isso não é só contado pelo filme, mas faz parte também da técnica discursiva narrativa dele: uma babuska oitocentista. Segredos são abertos e dentro deles mais caixinhas de segredos, por meio de histórias ‘encaixadas’ à grande narrativa que é aquela da sensibilidade européia no século XIX. Excelente, magistral. Uma aula, uma viagem, uma experiência.

20101023

notas à Mostra, I




1. O estranho caso de Angélica. Manuel de Oliveira



O mais pascoaesiano filme do Manuel. Pelo ritmo lento, chuvoso e noturno. Pelo real fantasmagórico que se abre no personagem, enquanto sua paixão o leva a arder até a morte. Pelo elogio do Norte e seus costumes muito, muito antigos. É um filme delicioso, certamente está entre os meus preferidos. As imagens são captadas com minúcias, é como se cada plano que focasse a pequena vila em que se desenrola a trama também já fosse uma estrada irreal para outros horizontes. As pequenas vilas à margem do Douro surgem então como altares à experiência do sagrado, já que a cidade se constrói nas encostas dos vales, abrindo-se assim à extensão de um horizonte de vales e mais montanhas. É bonita essa sensibilidade de captar o ‘anseio pelo longínquo’ que há na experiência de Portugal. Mesmo uma pequena vila transmontana ou da Beira busca-se fazer como se estivesse com o mar à frente, ou seja, é fundamental a extensão do horizonte, faça-se de terra ou água. Esse anseio luminoso e misterioso convive lado a lado com a prática antiga de bisbilhotar a vida alheia, de ocupar-se dos outros, de tomar tudo como uma pequena família, que nos leva a pensar que, talvez esses personagens caricatos do português e da portuguesa, não conheçam ainda as pessoas das grandes cidades, o imenso desconhecido que é qualquer outro no ritmo alucinatório das trocas contemporâneas. Aqui todos sabem o nome e segredos de todos, e se não sabem, inventam. É bem o registro da vida íntima em cidades do interior. Mas dentro dessa mesquinhez e desse atavismo que não sai do lugar, o que se vê é o sonho radical, o desejo de experimentar o contato denso com o que possa ultrapassar a matéria. Uma jornada para dentro, nutrida de poesia e literatura, (e Pascoaes)... uma maneira muito sincera e delicada de recontar a história dos amantes que só se reconhecem na morte.

20101009

ana rüsche, nós que adoramos um documentário

a folha


sempre achei meio idiota isso do Anchieta
ter escrito o poema na areia e agora tem,
em qualquer azulejo, o nem-sei-qual-o-poema
dele

aí muito mais tarde descobri
que muito nome tem ana escrito por dentro
e que se o branco são todas as cores juntas
isso daqui nunca é vazio
é mais uma gritaria tão grande que vc nem
consegue enxergar.
tenta.


Ana Rüsche. Nós que adoramos um documentário. Ourivesaria da palavra, 2010. (ProAC 2009)

ontem hoje amanhã e depois, FLAP!

AQUI


venham!