20101024

notas à Mostra, II




2. Mistérios de Lisboa. Raoul Ruiz



Em 266 minutos de intenso mergulho no século XIX, o impressionante folhetim de Camilo Castelo Branco é levado com maestria às telas do cinema. Todos nós saímos vertiginados da sala escura, após essas 4 horas e tanto de viagem a um tempo outro. È mágica a sensação de que podemos nos deslocar, com o cinema, para um tempo, um ritmo e uma qualidade de hábitos e sensações extremamente diferentes, e nesse filme, as horas prolongadas valem a pena, porque fazem durar em nós o arcabouço desse passado que se visita. Esquecemos que, hora dessas, sairemos dali, ouviremos barulhos do shopping-center, estaremos na rua Augusta num sábado à noite. Fico pensando que isso é magia, de fato. E quanto é mais intensa do que as experiências 3d, os parques de diversão supersônicos. Tudo é muito bem arquitetado, a magia está aí exatamente: o diretor não deixa um fio solto, é de uma sutileza de detalhes que te convencem mesmo a participar daquela grandiosa encenação. Não é para olhar de fora, não é brechtiano. O foco narrativo dos folhetins não é para isso, vide as novelas de nossos dias. É o grande show da vida cotidiana, com seus ritmos, seus dramas (aumentados, obviamente), seus mimos. É feito para cativar, para convidar o leitor-espectador a ouvir os segredos daquelas personagens. E de repente, tudo aquilo que nos causava estranheza – afinal, como disse a Lili, minha amiga, ao meu lado: “O século XIX é bizarro”, e era o que eu não parava de pensar – começa a ficar habitual, efeito vitorioso da longa duração da viagem. Se estranhamos os costumes daqueles nobres empolados, com mil protocolos para cada gesto, e um enfado de plumas a cercar um simples levantar de xícara, com o passar do tempo nos parece já sabermos ‘aquele’ modo de vida, enfim, saímos da recepção da estranheza e mergulhamos no tecido bizarro daquele mis-en-cene. Bizarro é uma palavra boa. Independente da mão do diretor e de suas ‘liberdades poéticas’, e da possibilidade de todo e qualquer tempo ser ‘bizarro’, o século XIX o é mais, para nós, talvez porque tenhamos visto os farelos remanescentes, as sobras, daqueles comportamentos de corte, daquela teatralidade rococó chegar até nossa sensibilidade. Nós rimos deles, das personagens. Acho que é porque tendemos a rir, hoje em dia, de gestuais românticos ou decadentes, enfim, desconfiamos, com humor, desses excessos. Para nós eles se parecem, todos, crianças grandinhas brincando de salão. Entre um tédio, um segredo e um contrato de salão, todos envelhecem dramaticamente, mas não se tornam adultos. Apenas aquelas personagens que assumem o desvio, por meio da culpa, do vexame ou da impossibilidade de continuar naquele mundo (da nobreza e das regras de comportamento), e acabam indo para igreja, é que parecem, de alguma maneira, ganhar um ‘sabor’ de maturidade. É bonito isso, porque já anuncia o grande plano contextual de fundo deste enredo: a derrocada do Antigo Regime e a ascensão definitiva do modo de vida burguês. As personagens são daquele rol de categorias hierárquicas que compõe a nobreza: condessas, viscondessas, marqueses, condes... Enfim, o destino desses pobres seres humanos é traçado desde o berço: se és 1º filho e varão, ficas com o nome e a herança. Se és 2º filho ou mulher, ficas com a carreira militar, no primeiro caso, e a necessidade de um casamento arranjado e frio, no segundo. Muitos desses ‘segundos filhos’ acabam no mesmo lugar: na igreja, no convento. Enfim, banidos, mesmo, do burburinho irritante da vida de corte, encontram uma certa paz resignada no silêncio do claustro. Se as personagens vivem suas histórias de paixão e de morte, o mais belo do filme, como já se disse, está na maneira como o século é mostrado, muito, muito sutilmente, com uma espécie de construção espetacular cujo efeito é o de uma ‘naturalidade’ mimética impressionante. O que vemos, ao fundo e ao largo dessas histórias desgraçadas (lembremos que o autor foi romântico, e ainda, do signo de peixes!) é a passagem de uma época. O filme começa citando o contexto das revoluções liberais portuguesas, quando a corte insatisfeita com o estabelecimento de D. Pedro no Brasil, auxilia o irmão do infante, D. Miguel a reforçar o estatuto monárquico-colonial em Portugal. Isso tudo em meio à pressão de frentes liberais que querem estabelecer uma nova constituição, liberal, no país. Somando-se à crise interna, o contexto das invasões napoleônicas, uma Europa que experimentava agressivamente uma transformação e tentava, por reação, reforçar os estatutos feudais sobre os quais ainda repousavam as monarquias e as nobrezas. O que já não era mais possível. A comunicação e o enriquecimento da Europa, proveniente do sucesso (do ponto de vista das metrópoles) colonial, acabara por levar esse mesmo sistema ao seu cansaço, criando uma categoria sócio-econônimca de peso que serão os futuros ‘self-made man’, gente que não precisa mais vir ‘da nobreza’ ou ‘descender de cima’ para ter e comprar as regalias e os contatos anteriormente apenas disponíveis, na legalidade dos hábitos e costumes, aos nobres. É assim que uma figura central da trama, um capataz do Marquês, capataz assassino e rude, irá, por meio de sua agilidade e esperteza, transformar-se num pirata infalível, e através de seus roubos, comprará palacetes e conviverá, nos salões e na cama, com as damas da alta sociedade. Inversamente, formando um eixo de ‘X’ à narrativa, enquanto o capataz ‘burguês’ acende socialmente, o Marquês, seu antigo e poderoso patrão, acaba os dias na mendicância. É interessante o não saudosismo do filme, a perspectiva não atulhada de ‘tristezas’ por conta do fim daquele mundinho aristocrata. O que se mostra, pelo contrário, é a avidez, a ignorância e a mesquinhez de todos ali, de como se partilha por igual um certo ‘fazer parte’ de tudo aquilo, de como se o jogo fosse para todos, e ao final, independente da pose e do garbo, o que conta é jogar bem. Nisso lembra bem o clima do Ligações Perigosas, se bem que ali esteja mais focado o prazer cruel dos aristocratas entediados. Aqui, nestes anos de 1800 adiante, a mistura social já é bem concreta, já não se pode mais simplesmente dividir este daquele por meio das aparências. Como se vê, algumas personagens trocam de nome e de história diversas vezes numa mesma vida, e a arte de virar a casaca é uma arte de sobrevivência, para essas figuras meio marginais da nobreza, gente que não está no topo nem abaixo, mas que flutua numa faixa intermediária em que vence a astúcia e a atenção aos segredos dos outros. Tudo isso não é só contado pelo filme, mas faz parte também da técnica discursiva narrativa dele: uma babuska oitocentista. Segredos são abertos e dentro deles mais caixinhas de segredos, por meio de histórias ‘encaixadas’ à grande narrativa que é aquela da sensibilidade européia no século XIX. Excelente, magistral. Uma aula, uma viagem, uma experiência.

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