20101023

notas à Mostra, I




1. O estranho caso de Angélica. Manuel de Oliveira



O mais pascoaesiano filme do Manuel. Pelo ritmo lento, chuvoso e noturno. Pelo real fantasmagórico que se abre no personagem, enquanto sua paixão o leva a arder até a morte. Pelo elogio do Norte e seus costumes muito, muito antigos. É um filme delicioso, certamente está entre os meus preferidos. As imagens são captadas com minúcias, é como se cada plano que focasse a pequena vila em que se desenrola a trama também já fosse uma estrada irreal para outros horizontes. As pequenas vilas à margem do Douro surgem então como altares à experiência do sagrado, já que a cidade se constrói nas encostas dos vales, abrindo-se assim à extensão de um horizonte de vales e mais montanhas. É bonita essa sensibilidade de captar o ‘anseio pelo longínquo’ que há na experiência de Portugal. Mesmo uma pequena vila transmontana ou da Beira busca-se fazer como se estivesse com o mar à frente, ou seja, é fundamental a extensão do horizonte, faça-se de terra ou água. Esse anseio luminoso e misterioso convive lado a lado com a prática antiga de bisbilhotar a vida alheia, de ocupar-se dos outros, de tomar tudo como uma pequena família, que nos leva a pensar que, talvez esses personagens caricatos do português e da portuguesa, não conheçam ainda as pessoas das grandes cidades, o imenso desconhecido que é qualquer outro no ritmo alucinatório das trocas contemporâneas. Aqui todos sabem o nome e segredos de todos, e se não sabem, inventam. É bem o registro da vida íntima em cidades do interior. Mas dentro dessa mesquinhez e desse atavismo que não sai do lugar, o que se vê é o sonho radical, o desejo de experimentar o contato denso com o que possa ultrapassar a matéria. Uma jornada para dentro, nutrida de poesia e literatura, (e Pascoaes)... uma maneira muito sincera e delicada de recontar a história dos amantes que só se reconhecem na morte.

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