20120329

o poço encantado | le puits enchanté _____________ poema de André Breton, do livro 'signe ascendent'

o poço encantado


Lá fora o ar vai se resfriando
O fogo é frágil sob a chaleira azul das lenhas

A natureza cospe em sua pequena caixa de noite
Sua sutil escova começa a luzir
as arestas das moitas e dos navios

A cidade nos longos sinais de fulgor
Sobe até se perder
O longo de uma ladeira de canções que entre em espiral
pelas ruas desertas

Quando as amarelinhas abandonadas retornam uma
após outra pelo céu
Lá onde o fundo se afunila
Nas samambaias enlouquecidas do olhar
Eu tenho um encontro com a dama do lago

Eu sei que ela virá
Como se eu estivesse adormecido em fúcsias
É lá
No lugar onde o debaixo se eleva até a casa
das nuvens

Uma cabine de elevador pelas paredes da qual brilha por
maços de lingerie de mulher
Cada vez mais verde

Para mim

Para mim a flor do grisu
O lúdio humano o morcego branco
A grande advinha sagrada

Melhor que num filete d'água Ofélia no balé das moscas
de maio
Eis no reflexo do fio de chumbo aquela que está no
segredo das toupeiras

Eu vejo a sola do pó do diamante eu vejo o pavão
branco que faz a roda atrás do guarda-fogo da chaminé
As mulheres que desenhamos pelo avesso são as únicas
que nunca foram vistas

Seu sorriso é feito para a expiação dos mergulhadores de
pérolas
Com pulmões transformados em corais

É a Medusa encoberta cujo busto rodopia lentamente
na vitrine
De perfil eu acaricio seus seios nos pontos alados

Minha voz não lhe alcançará estes são dois mundos
E mesmo
De nada adiantará jogar em sua torre uma carta toda
aberta aos ângulos melados

Foram dadas a mim as algemas cintilantes de Peter
Ibbetson

Eu sou um pedreiro que enlouqueceu
Que arranca por placas e acabará por deitar abaixo
todo o telhado da casa
Para melhor ver como o vendaval se levanta do mar
Para me untar à batalha das flores
Quando uma coxa se alonga além da escrivaninha e entra em jogo o
pedal do perigo

A bela invenção
Para substituir o cuco o relógio pelo balanço
Que marca o tempo suspenso

Pingente do lustre central da terra
Minha ampulheta de rosas
Você que não subirá à superfície
Você que me olha sem me ver no jardim da
provocação pura
Você que me manda um beijo da portinhola de um trem
que foge


tradução Roberta Ferraz








20120325

C_O_N_V_I_T_E_________ noite dos 4 cantos: poesia francesa, no CENTRO CULTURAL SP | sexta, 30 de março, às 20h30 | gratuito

caros,


é com o prazer total que eu e danilo bueno nos debruçamos sobre este leito
sinuoso e aromático da langue française
e dali colhemos picantes frutas de palavras
ressuscitando uma exímia trupe báquica
que a nós se juntará na próxima sexta, dia de oxalá:


que venha arthur!


que venha andré!


que venha anna!



que venha guillaume!



que venha marguerite!




que venha robert!



todos virão!


como se não bastasse a presença destes e d'outros amores
haverá ainda
M_ú_S_I_c_a
com a soprano Laura de Souza e a pianista Dana Radu
interpretando belezas de debussy, fauré e duprac!




é só aparecer também! axé!

20120321

doutorado, efeméride I




foi dada a largada
hoje agora 14:26
reciclagens de casa 8
planos extra-oceânicos
arado consistente do céu
uma linda estrela de terra
oxalá! axé!


20120318

1997,






julia hansen me pediu que revisitasse 1997, abrisse a compota tão mesclada desse passado, e ficou assim, aqui

20120311

auto-retrato como consequência [poema-exercício]





auto-retrato como consequência

para maiara gouveia e érica zíngano


é transparente

dentro

do ouriço

do mar


necrófaga boca

alimenta-se dos mortos

a boca não fica

escondida

abaixo-dentro

mas tem cinco dentes

que formam a lanterna de Aristóteles

para a mastigação de algas

(como lei de esquecimentos)

a larva fixa na pedra dos fundos

iguaria nas bocas

ou quelóides

(esquecimentos difíceis)


echinoidea, dizer ouriços

o corpo é bolboso

o anus está no centro da face oposta

à boca, os quelóides podem ocorrer

espontaneamente

como abrasões ou infecções

o quelóide não regride

e quando excisado exorcisado

(excitado)

tende a recorrer

– esta fissura anal leva a adorar

nomes de doenças

como écrina anidrose

pérola montando cavalos marinhos

éguas selvagens remanescidas

de algum holocausto

apenas mítico –


não interessa tanto mas faz parte do retrato:

os quelóides foram descobertos

por cirurgiões egípcios em 1700 aC

se chele é caranguejo

e oide é forma

o quelóide é portanto uma seqüela

tão lunar quanto um útero um figo


vagueia camuflado em noite ou

mamífera introspectiva se

fora d’água vem a inesperada ruptura

em porca

porca crepuscular e viajante

ainda cheia

de espinhos

fora d’água ainda semeia

em estradas o lusco-fusco

dos atropelamentos

vive pouco

mais de três anos

solitário e territorial

na companhia de minhocas sapos

lagartos aranhas escaravelhos

difícil esquecimento da pele egípcia

e das sessões de extermínio

de sua cauda preênsil


em qualquer imagem

(capturada de relance)

fora ou dentro d’água

verá que tem escaras

como decoração


20120310

& variações do nome





Roberta Ferraz

Abrupta Feroz

Aberta Fecal

Roseta Farás

Recoberta (F)oral

Absorta Tenaz

Obsoleta Venal

Coberta Capaz

Absurda Azar

Deserta Rapaz

(...)


20120305

ainda Calixto, Fabiano: ecos, para quem quiser mais


FABIANO CALIXTO publicou os seguintes livros de poesia:

“Algum” (edição do autor, 1998),

“Fábrica” (Alpharrabio Edições, 2001),

“Música possível” (CosacNaify/7Letras, 2006)

e “Sangüínea” (Editora 34, 2007).

FABIANO CALIXTO nasceu em Garanhuns, PE, em 1973. É mestrando em Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo - USP. Tem poemas e artigos publicados em vários jornais e suplementos do Brasil e do exterior. Publicou os seguintes livros de poesia: “Algum” (edição do autor, 1998), “Fábrica” (Alpharrabio Edições, 2000), “Um mundo só para cada par” (Alpharrabio Edições, 2001), “Música possível” (CosacNaify/7Letras, 2006) e “Sangüínea” (Editora 34, 2007) – este finalista do Prêmio Jabuti de 2008 na Categoria Melhor Livro de Poesia. Publicou também o livro de poemas infantis “Pão com bife” (Edições SM, 2007). Organizou, com André Dick, o livro-homenagem a Paulo Leminski, “A linha que nunca termina – Pensando Paulo Leminski” (Lamparina, 2005). Traduziu poemas de Gonzalo Rojas, Allen Ginsberg, John Lennon, Laurie Anderson, entre outros. Traduz atualmente a obra de Benjamín Prado. Edita, com Angélica Freitas, Marília Garcia e Ricardo Domeneck, a revista de poesia Modo de Usar & Co. Prepara atualmente seu novo livro de poemas, intitulado “Nominata morfina”.




entrevista com FABIANO CALIXTO _ para o ONDAS LITERÁRIAS, poesia contemporânea brasileira, produzido e dirigido pela querida Andréa Catrópa



aqui, Fabiano lê texto inédito, "Instruções para compor um folk" de seu próximo livro!

20120304

PARTIDA _ [excerto de poema inédito, em exercícios]






I


a vaca: agarre-se à lua

uma espreguiçadeira de verão

escura inominada

na opacidade cerâmica

do branco crescente


esfoliação do vento

melancolia da partida


são cinco as manivelas

acionam a lua embrulhada de calma

são sal lembranças penedos

dentro do fiapo de ver Anna

Zborowska

bebo

socorro à pane das cores

viúva tão fresca fruta tão viva


suspendêssemos por mais

você enlouqueceria

são apenas as orelhas, é comum

irritadiças, as corças do jardim, não eram corças

corujas

a mãe coruja

semblante sonoro da espera

então espera


suas orelhas estão quentes

no mínimo

nome

um registro

banal

toda façanha

banal

comovida ou não, é assim

as mãos dentro do som

vibrantes centelhas

de uma figa


inexata você disse, azul


inexata

propensa

à fome

ao sono

quando cargueiros desiludidos ou águias vermelhas encaracoladas

aquele grito

ouviu?


ele cheira

as respostas

do fogo pálido

ciladas agudas

você está aí?

escuto aplausos

o quê mais?

números

ciladas?

números


volto a existir e a rua

a música aspirante

dentro do copo vazio

bóia congelada

antes da goela

reto ao coração

e cessa


a aparição de guerrilhas, o mundaréu de espelhos, reflexivo abuso dentro dos acordes

quebram a alta engrenagem, tragam até agora aqui Roberto Piva

tremem, as mãos tremem demais, o verbo daquela artéria oscila, faz frio ainda ali, e é quente a fotografia

é a praia simultaneamente eterna, eterna, fosca, feita em polaróide para que deguste

o relógio deixado a brio numa parede demolida quase na noite, a paisagem crisálida da partida


imagino que Nova Iorque

seja um cargueiro

cheio de morte


mais uma fotografia


qualquer que desbotasse

adiado o rosto errante

da partida


nunca soubemos de ti não haverá súplica apenas um telefonema do hospital

mais próximo


de ti, quando sou eu

quem deixa dita a nossa

existência

a existência

da praia

de nome

Camburi , móvel nos dentes

tão frio, teu casaco

ali nos esqueceríamos de voltar

à noite nos restou

a música a espera

mesmo sagaz, música

indiferente

praia

destinada

a partir-se

fria

fotografia


para o Cairo ou Nova Iorque qual a diferença? a você

resta o corpo

a fuligem

de uns tecidos

quentes

ainda

quentes

agarrados

às ondas

num estertor

lento

é possível

apenas o mar

é possível

constato

soubéssemos

(como a areia)

rude

deixar o sangue

os duros dias

o torso os calcanhares

e que os ossos

amedrontados nus

naturalmente

deixassem

sugar

a porosidade da perda



já íntima dos madrigais

despedaçada e clara

no final do mar

eu cantaria sobre o veraneio

só sobrou aquela ali

com um prego enfiada

todas as noites

no mesmo sonho

é Camburi


você diz

é Nova Iorque

poderia ser Alexandria

não, não havia qualquer gota

qualquer sereno

dentro dos encadeamentos

onde se gravar fúrias, nem isso vulnerável demais

dentro de nós este caminhão adestrado


o cavalo não está a trabalho, balanço a cabeça ao senhor de dentes de ouro

reparo

começam a cair os cabelos do general

não são os meus os cabelos que caem

meus cabelos seguem imensos

meia-volta segunda visita de saturno

e basta uma viagem




20120303

viva poesia brasileira (I): FABIANO CALIXTO, mirando algo delicado do outro / lado da rua


Escolhi o Fabiano para começar, talvez porque tenho andado com o Sanguínea na bolsa, e o porquê disto eu não sei. É gosto mesmo, prazenteiro. A ideia aqui é trazer poemas que gosto de gente bem viva escrevendo hoje, agora. Algumas dessas pessoas e alguns destes poemas eu conheço de perto, outros imagino bem, outros ainda é uma primeira vez. Não é fazer crítica literária com panca e circunstância (é diário de leitura, abajur amarelado com livro querido dentro, carta ou convite, é conversa ao pé do ouvido). É dizer do gostar e de como aconteceu a leitura, as sinestesias que ela abriu, os acasos objetivos exatos entre um livro e um leitor, que dá ao poema o seu corpo, a sua respiração. Os poemas que trago, de cada poeta, foram os que fincaram em mim alguma atenção mais firme, nesta leitura feita agora. Amanhã a recolha certamente seria outra. Por isso mesmo pouco importa, o que veio o que ficou. Os livros são seres metamórficos e magníficos. É a coisa mais mágica que a gente às vezes nem percebe. As estantes se movem sozinhas. Eles se acomodam por afinidade. O diálogo sinfônico entre poemas. Esta delícia. (Enquanto brota o trabalho de doutorado, brilho as horas vagas com poemas que gosto de ler, e trago até aqui: é isso apenas) .O Calixto. Pois bem: eu gosto de ler o Calixto, gosto de verdade, é fácil mesmo dizer que gosto. Não há nenhum pingo de gentileza escamoteada aqui: é a pura verdade. Talvez porque ele goste muito de música, os poemas atestam e vivificam essa constância da música na vida pelos amores, pela cidade, pelas flores e pelas cores, todas abundantes aqui. O que eu tenho em mãos, e trago em pouquinhos, é do livro Música Possível (Cosac Naify, 2006) e do Sanguínea (Ed. 34, 2007). Infelizmente, caro Calixto, não tenho os seus outros livros. (Quer me enviar de surpresa?) Volto, à música. Do título, à epígrafe do Drummond (“A música se embala no possível, / no finito redondo, em que se crispa / uma agonia moderna”), a cada página virada e dobrada para o diálogo com as páginas seguintes. Mas além da música, bem possível concreta ereta deslizante – real – aqui, eu ainda gosto mais porque tem muita música toda toada em lirismo. Sabe, nos reveses das páginas, você escuta ecoando Something in the way she moves, e depois no fim do verso seguinte, again, Something in the way she moves. Não é um disco quebrado, é o sinal da reminiscência. É a escolha da trilha sonora. É um ato estético. Que é um jeito de olhar pro mundo (e para as meninas do mundo) e suspirar/suportar tanta agonia, moderna.

Tem uma coisa de palhaço aqui. (palhaço é uma fantasia bem triste, mas não é resmungona). Não falo dos palhaços idiotas e sem graça. Falo daquele verdadeiro palhaço lírico. Ah, sim, amo a coragem lírica do Fabiano, saber falar tanto e tão bem de amor. O palhaço felliniano. (Ainda sofre de cifrada [música] rasurada descomedida melancólica humanidade). Meio desbotado, mas não Carlitos. Menos afetado, menos caricatural. É um palhaço feito de própria vida, sem maquiagem, meio riso-meia lágrima, e move on, and so on, because Something in the way she moves... A dor escancarada do Calixto faz bem porque não é histérica. E nem completamente deprimida. Parece ser justa. Não quer chamar atenção para si mesmo, não quer mostrar oh como sou sofrido sou penitente sou vítima sou o escambau. A dor compartilha-se, tem uma tonalidade que eu leio em mim. Como um canal de rádio, numa madrugada pelas bordas da cidade, eu me sintonizo nela, é fácil achar essa música possível, porque é clara e sincera a palavra eleita. Não falo de sinceridade de um eu, Fabiano Calixto ou Roberta Ferraz. Não é disso que se trata, que fique óbvio. Sinceridade é aquele equilíbrio entre o que pode ser dito e o que resulta disso. É a magia do poema. Uma fagulha difícil, de árduo labor, que exige um sujeito – um poeta – disposto a ser poema, ou seja, disposto a ser uma voz sempre em busca, uma voz chamante, uma voz charmante, uma carmina, uma voz xamã. E eu (re)(des)conheço muito de São Paulo por aqui, pelos poemas. Vejo as esquinas de diversas ruas. Sinto o clima da USP, dos sebos, das noites. Deuses, escuto as risadas! Os atropelamentos. A covardia. E sinto muito o rádio no ouvido, como a gente ouve música entre os trânsitos, os deslocamentos, não é? A música vai mesmo fazer parte desse cinema, vai colorir a imagem: a poesia torna a música possível, vice, versa. Ainda que breve, e cedo acabe a pilha. E você está sem trocado pra comprar novas. Começa então a cantarilhar sozinho, de cabeça, by heart: Something in the way she moves. O Fabiano que eu li foi esse palhaço lírico. Menos pierrô. Nada de pierrô. Não tem derrotismo nenhum ali, porque mesmo os amores difíceis e em frangalhos viram ferida de flor. Ah, sim, flores, cores: volta o Rimbaud com o excesso de azul e de lilás. Eu gosto de cor. Acho inclusive que o azul é a cor mais erótica que tem. Deve ser porque o mar. E nos poemas do Fabiano existe essa mescla física que dá até cheiro, cheiro de feijão e cachaça, de tardes quentes espalhando pelo ventilador, de terra batida e molhada (ah, a infância) e cheiro de sangue, de crime e de silêncio. É bruta essa matéria. E ele sabe, matéria bruta, pedra rara: poesia, música possível (“um delicado buquê canoro”). Além do mais, dos Beatles, há essa ciranda rouca maravilhosa que ele escolheu como cúmplices: Sylvia Plath, Hilda Hilst (corrosão que veio tarde, mas nunca é tarde demais, meu caro) e Ana C. Além dos outros, amantes-fantasmas que tecem o vivo para a vida, essa tríade de mulheres que enche a minha vida de esperança. A minha existência, eu sei disso com todas as letras, deve muito ao haver Sylvia, Hilda, Ana. Muito. Muito além do sangue das páginas. É pão e café mesmo. É aguardente salvífica, porque o pé se caleja demais e é muito fácil tropeçar em foices, se perder afogada no meio da av. Paulista. Muita gente em situações de violência insuportável. Nenhuma música apaga este relevo ou suaviza. O Calixto sabe disso, provoca isso, não disfarça. Mas ele como o Che não perde a doçura. E eu amo essa doçura, Calixto. Essa coragem do vivo. Essa ousadia lírica. Esse palhaço comovido sem pieguice. Essa tristeza tão crua quanto ave. A geometria das borboletas, os lírios lilases dos olhos duma moça, as cenas selvagens de um road movie na cabeça do trem à Sant’andré, os emails todos, a combustão de trocar poemas, ler poemas, dizer poemas, ser amigo dos poemas, pelos poemas, neles. Antisonetos que fazem bem também ouvir com Antonín Dvorák, na companhia de suas danças eslavas (experimente!) E fora que o Calixto, em pessoa, é esse mesmo. Um sujeito doce, atento. Sempre disponível, vindo conversar, querendo saber, olhando o vivo. Nada blasé (eu é que sou blasé, e me enfastio demasiado desse hábito pseudo-protetor) (mas chega, vou dizer é do Calixto). Nada blasé. Vivíssimo. Já sentou-se lá no tatame com cachaça, cerveja & cia e ouviu de mim e Marcelo os nossos talhos, poemas em andamentos, músicas (claro!). Já foi Torquato na carona do carro, boteco largas horas via Augusta. Uma pena que perdi sua última fala, lá na livraria da Vila, em janeiro. O Danilo Bueno, camaradíssimo nosso, (que logo estará aqui, no blog, nesta seção ‘viva poesia brasileira’) ficou e ouviu o Fabiano lendo, e depois me disse: Nossa, depois daquilo o melhor é morrer. Não foi bem assim que o Danilo disse (era um elogio, caso não dê pra perceber, viu, Calixto?), mas foi tragicamente engraçado, e por isso desconfio que o Fabiano, sem perder a ternura, possa estar experimentando lances de humor negro pelo cotidiano afora. Não sei. Vejamos. Eu só sei é que, lírico como o camarada é, deve haver ainda nas resmas mínimas da agonia, aquele eco, corrente, constante, de fim de festa, murmurado, na casa do vizinho (que seja!) cantando e repetindo Something in the way she moves...Obladi Oblada....Obladi Oblada...

Notícula: o Calixto é muito melhor que isso tudo dito, of course. Vocês vão ver, tenho certeza!!! Evoé, Calixto, evoé, bem-vindo!!!



FABIANO CALIXTO. Sanguínea. SP: Editora 34, 2007.

VERSOS DE CIRCUNSTÂNCIA

eu não entendia

e ela se mexia tanto ao meu lado

e aqueles brancos apertados

o ar condicionado gelando

tudo (os brincos dela,

o meu humor)

mais de uma hora cruzando

ruas, avenidas, parágrafos –

o livro gritando alto

para um mundo ensurdecido

depois de arrumar-se mais

algumas dezenas de vezes

o sol já estava no meio do céu

quando ela se levantou

foi então que percebi que

três pequenos pássaros

voavam em suas costas



CANTO DE INSÓNIA

alguém na vida da minha mulher sonha em plantar eu-

caliptos. na vida da minha mulher, alguém não consegue

se lembrar dos sonhos da noite anterior. No porta-retra-

tos da minha mulher a família está desfalcada. na bolsa

da minha mulher há balas de menta extraforte e troca-

dos para o ônibus. há também, na bolsa da minha mu-

lher, o clássico de Melville. e o que mais me intriga, entre-

tanto, é que alguém na vida da minha mulher sonha em

plantar eucaliptos. talvez isso me assuste um pouco; mais,

muito mais, que a sala vazia, que alguém que aguarda,

uma saudade de pedra, o amor na enseada.




RUÍDO ÚMIDO

o amanhecer é triste

a lua ainda expulsa

à pia da manhã

os últimos dos cães

vermelho amarelo prata

despertar é despedida

(com um lenço quadriculado

na cabeça, um elegante

sobretudo claro, mirando

algo delicado do outro

lado da rua, as mãos nos

bolsos, rindo, sabemos que ela é

Sylvia Plath, e que, depois de tudo,

a palavra vida não

a levou de volta para casa)

chuto pequenas pedras

observo pequenas trevas

que ainda sobrem nas lacunas

ornamentais e fixo

o desalento



UMA HISTÓRIA DE AMOR

Take 1:

Desmond pergunta

jogando no sofá da sala

nocauteado por um litro e meio de conhaque

por onde andará seu amor


Molly tenta arrumar os livros,

os discos, os dísticos

em seu quarto e

indaga ao espelho

a quem serve

a tal democracia


Take 2:

desaba na cama nem vê que o lençol

é xadrez e que não há mais

cigarro dentro da gaveta

do criado-mudo


interiores habitados por

violência de dissoluções

e ternura

ela caminha na neve

lábios russos e rachados


a água cai e estoura o estuque

repete-se (elegia voz)

a morte

nas trincheiras

(o silêncio é um

Único grito de dor

it is said to represent a mirror)



E-MAIL PARA PAUL MCCARTNEY

- ela alimenta os bem-te-vis

é fascinada pela ideia que

o pólen, que escapa das flores, fecunda

os óvulos de outras flores, e destes,

outras flores, mais pólenes, e outras mais

outras flores e outras –

uma primavera –

ela é o silêncio de qualquer madrugada

onde se acende um incenso –

ela é sempre – o máximo

é o mínimo dessa garota –


(a casa de abelhas longe/ as flores dos favos/

dezessete anos, para ser mais preciso/ o sonho/

o rosto aberto a sorrisos/ a tarde tecida na rede/

lâminas de ouro rubro/ júbilo e brisa fresca/

um delicado buquê canoro a jurar jades a Jude)


as canções

de que são feitas?

da mesma erupção de

azuis de que são feitos

os oceanos? ou

do mesmo tecido que

veste vôos de borboletas? seriam,

ainda, feitas de dias

a comer pães e queijos com quem

escolheste para, dia após dia,

comer pães e queijos?

da coleção de fuzilamentos

de mulheres

como Anna Akhmátova?


(não há (nem precisa de)


uma canção pode ser algo como o vôo

de uma gaivota sobre uma rocha marítima

ou como a alma de alguém que olha o fim de tarde

numa cidade destruída

pela guerra



SONETO

Para Dirceu Villa

verde que intacto se

despedaça na devoção

a uma árvore

sina qual do sol: soletrar-se

singular a tudo

flores

mínimas autodidatas levitam

sua moldura ao

silêncio que o vento

furta


o jardim (onde insetos

torcem o entardecer)

esplende paisagens

umas

flautas lidas

por sabiás

outras

com insônia de cigarras

abrindo

azuis

(um livro? uma labareda?)


uma borboleta (meditação

geométrica)

estilha o

que resta do inverno e

de tantas

vésperas abrupta

faz o jardim dormir


depois desata-se

com sua seda

do tecido

e cede

assento à

estação de deuses

na penumbra

edênico sem pêsames

o conjunto imóvel

respira



OW

agora, só

a queria

em meus braços

sentir em meu rosto os azuis

que habitam sua respiração

de flor

tocá-la (e sabendo

da imensa delicadeza

de sua pele, doar

seda aos dedos,

com um Van Eyck

encantamento

aos olhos)

e perceber que,

entre múltiplas probabilidades de

linguagem, você estava

toda arrepios

como num levante

no qual seu corpo

reivindicasse todas

as possibilidades de

movimentação de

minhas mãos

e agora

(delicadeza à temperatura

de sol às quatro da tarde)

seu riso junta-se à

doce indisciplina

e tudo muda

no seu rosto

no seu corpo

e no sistema solar



FABIANO CALIXTO. Música Possível. SP: Cosac Naify, 2006

Poema n. 12

começa o outono

dentro de Baudelaire


o céu desta estação

deixa tudo sem fim


rasgo outro poema

e fico mais lúcido


penso na morte

na certeza que ela tem


sento no sofá

perto do incêndio


que poderia, agora,

devorar esta dor


que mora também

nos livros, nos ladrilhos



Paisagem

para Ronald Polito

descendo a rua sem nome

corada de árvores, estas

entre o crespo e o nu,

a paisagem brota como de um aborto

tal a violência com que transtorna

as pupilas de quem vê

(aliás, as mesmas que vêem

o talhe no baú do caminhão abandonado

que parece ter sido causado pela mesma luz

que rasga parte

deste céu de meia-estação)



Horário de almoço, Mauá

andando e os olhos

na órbita de um projeto

de palavras.


(um menino me dá um tiro.

imaginário.

calibra os passos.

dispara risadas.


eu: vivamente morto:

respiro).


*


na biblioteca à

leitura do jornal

meninos (outros)

anoitecem

em notícia.





Criança

rosto maquiado com

sombra. não a que


escapa-lhe ao corpo.

outra sombra, por dentro,


guache de pranto

em cores-hematoma.


resto sob o soco,

sob o esgoto da


aldeia. catedral densa

de cólicas. cela de névoas.


sóbrio como a pálida morte

dentro do dorso. um dentro


vazio. último estalo. (sol a pino).

suspiro contido. útero de um tiro.





Poema n. 39

La carta que me mandaron

me piede contestación

(Violeta Parra)

insurgente: um povo

noite sem estrelas: um rosto


(um gay em São Francisco

um chicano nos Estados Unidos,

um negro na África do Sul,

um palestino em Israel,

um judeu na Alemanha,

um muçulmano na Bósnia,

um camponês sem-terra em qualquer país,

uma mulher desacompanhada no metrô às 10 da noite)


dentro cravado impregnado

um homem

insurge


alguma fé

ya basta!


(um coágulo de mel

na pele inimaginável

de um imenso

mar morto)