Escolhi o Fabiano para começar, talvez porque tenho andado com o Sanguínea na bolsa, e o porquê disto eu não sei. É gosto mesmo, prazenteiro. A ideia aqui é trazer poemas que gosto de gente bem viva escrevendo hoje, agora. Algumas dessas pessoas e alguns destes poemas eu conheço de perto, outros imagino bem, outros ainda é uma primeira vez. Não é fazer crítica literária com panca e circunstância (é diário de leitura, abajur amarelado com livro querido dentro, carta ou convite, é conversa ao pé do ouvido). É dizer do gostar e de como aconteceu a leitura, as sinestesias que ela abriu, os acasos objetivos exatos entre um livro e um leitor, que dá ao poema o seu corpo, a sua respiração. Os poemas que trago, de cada poeta, foram os que fincaram em mim alguma atenção mais firme, nesta leitura feita agora. Amanhã a recolha certamente seria outra. Por isso mesmo pouco importa, o que veio o que ficou. Os livros são seres metamórficos e magníficos. É a coisa mais mágica que a gente às vezes nem percebe. As estantes se movem sozinhas. Eles se acomodam por afinidade. O diálogo sinfônico entre poemas. Esta delícia. (Enquanto brota o trabalho de doutorado, brilho as horas vagas com poemas que gosto de ler, e trago até aqui: é isso apenas) .O Calixto. Pois bem: eu gosto de ler o Calixto, gosto de verdade, é fácil mesmo dizer que gosto. Não há nenhum pingo de gentileza escamoteada aqui: é a pura verdade. Talvez porque ele goste muito de música, os poemas atestam e vivificam essa constância da música na vida pelos amores, pela cidade, pelas flores e pelas cores, todas abundantes aqui. O que eu tenho em mãos, e trago em pouquinhos, é do livro Música Possível (Cosac Naify, 2006) e do Sanguínea (Ed. 34, 2007). Infelizmente, caro Calixto, não tenho os seus outros livros. (Quer me enviar de surpresa?) Volto, à música. Do título, à epígrafe do Drummond (“A música se embala no possível, / no finito redondo, em que se crispa / uma agonia moderna”), a cada página virada e dobrada para o diálogo com as páginas seguintes. Mas além da música, bem possível concreta ereta deslizante – real – aqui, eu ainda gosto mais porque tem muita música toda toada em lirismo. Sabe, nos reveses das páginas, você escuta ecoando Something in the way she moves, e depois no fim do verso seguinte, again, Something in the way she moves. Não é um disco quebrado, é o sinal da reminiscência. É a escolha da trilha sonora. É um ato estético. Que é um jeito de olhar pro mundo (e para as meninas do mundo) e suspirar/suportar tanta agonia, moderna.
Tem uma coisa de palhaço aqui. (palhaço é uma fantasia bem triste, mas não é resmungona). Não falo dos palhaços idiotas e sem graça. Falo daquele verdadeiro palhaço lírico. Ah, sim, amo a coragem lírica do Fabiano, saber falar tanto e tão bem de amor. O palhaço felliniano. (Ainda sofre de cifrada [música] rasurada descomedida melancólica humanidade). Meio desbotado, mas não Carlitos. Menos afetado, menos caricatural. É um palhaço feito de própria vida, sem maquiagem, meio riso-meia lágrima, e move on, and so on, because Something in the way she moves... A dor escancarada do Calixto faz bem porque não é histérica. E nem completamente deprimida. Parece ser justa. Não quer chamar atenção para si mesmo, não quer mostrar oh como sou sofrido sou penitente sou vítima sou o escambau. A dor compartilha-se, tem uma tonalidade que eu leio em mim. Como um canal de rádio, numa madrugada pelas bordas da cidade, eu me sintonizo nela, é fácil achar essa música possível, porque é clara e sincera a palavra eleita. Não falo de sinceridade de um eu, Fabiano Calixto ou Roberta Ferraz. Não é disso que se trata, que fique óbvio. Sinceridade é aquele equilíbrio entre o que pode ser dito e o que resulta disso. É a magia do poema. Uma fagulha difícil, de árduo labor, que exige um sujeito – um poeta – disposto a ser poema, ou seja, disposto a ser uma voz sempre em busca, uma voz chamante, uma voz charmante, uma carmina, uma voz xamã. E eu (re)(des)conheço muito de São Paulo por aqui, pelos poemas. Vejo as esquinas de diversas ruas. Sinto o clima da USP, dos sebos, das noites. Deuses, escuto as risadas! Os atropelamentos. A covardia. E sinto muito o rádio no ouvido, como a gente ouve música entre os trânsitos, os deslocamentos, não é? A música vai mesmo fazer parte desse cinema, vai colorir a imagem: a poesia torna a música possível, vice, versa. Ainda que breve, e cedo acabe a pilha. E você está sem trocado pra comprar novas. Começa então a cantarilhar sozinho, de cabeça, by heart: Something in the way she moves. O Fabiano que eu li foi esse palhaço lírico. Menos pierrô. Nada de pierrô. Não tem derrotismo nenhum ali, porque mesmo os amores difíceis e em frangalhos viram ferida de flor. Ah, sim, flores, cores: volta o Rimbaud com o excesso de azul e de lilás. Eu gosto de cor. Acho inclusive que o azul é a cor mais erótica que tem. Deve ser porque o mar. E nos poemas do Fabiano existe essa mescla física que dá até cheiro, cheiro de feijão e cachaça, de tardes quentes espalhando pelo ventilador, de terra batida e molhada (ah, a infância) e cheiro de sangue, de crime e de silêncio. É bruta essa matéria. E ele sabe, matéria bruta, pedra rara: poesia, música possível (“um delicado buquê canoro”). Além do mais, dos Beatles, há essa ciranda rouca maravilhosa que ele escolheu como cúmplices: Sylvia Plath, Hilda Hilst (corrosão que veio tarde, mas nunca é tarde demais, meu caro) e Ana C. Além dos outros, amantes-fantasmas que tecem o vivo para a vida, essa tríade de mulheres que enche a minha vida de esperança. A minha existência, eu sei disso com todas as letras, deve muito ao haver Sylvia, Hilda, Ana. Muito. Muito além do sangue das páginas. É pão e café mesmo. É aguardente salvífica, porque o pé se caleja demais e é muito fácil tropeçar em foices, se perder afogada no meio da av. Paulista. Muita gente em situações de violência insuportável. Nenhuma música apaga este relevo ou suaviza. O Calixto sabe disso, provoca isso, não disfarça. Mas ele como o Che não perde a doçura. E eu amo essa doçura, Calixto. Essa coragem do vivo. Essa ousadia lírica. Esse palhaço comovido sem pieguice. Essa tristeza tão crua quanto ave. A geometria das borboletas, os lírios lilases dos olhos duma moça, as cenas selvagens de um road movie na cabeça do trem à Sant’andré, os emails todos, a combustão de trocar poemas, ler poemas, dizer poemas, ser amigo dos poemas, pelos poemas, neles. Antisonetos que fazem bem também ouvir com Antonín Dvorák, na companhia de suas danças eslavas (experimente!) E fora que o Calixto, em pessoa, é esse mesmo. Um sujeito doce, atento. Sempre disponível, vindo conversar, querendo saber, olhando o vivo. Nada blasé (eu é que sou blasé, e me enfastio demasiado desse hábito pseudo-protetor) (mas chega, vou dizer é do Calixto). Nada blasé. Vivíssimo. Já sentou-se lá no tatame com cachaça, cerveja & cia e ouviu de mim e Marcelo os nossos talhos, poemas em andamentos, músicas (claro!). Já foi Torquato na carona do carro, boteco largas horas via Augusta. Uma pena que perdi sua última fala, lá na livraria da Vila, em janeiro. O Danilo Bueno, camaradíssimo nosso, (que logo estará aqui, no blog, nesta seção ‘viva poesia brasileira’) ficou e ouviu o Fabiano lendo, e depois me disse: Nossa, depois daquilo o melhor é morrer. Não foi bem assim que o Danilo disse (era um elogio, caso não dê pra perceber, viu, Calixto?), mas foi tragicamente engraçado, e por isso desconfio que o Fabiano, sem perder a ternura, possa estar experimentando lances de humor negro pelo cotidiano afora. Não sei. Vejamos. Eu só sei é que, lírico como o camarada é, deve haver ainda nas resmas mínimas da agonia, aquele eco, corrente, constante, de fim de festa, murmurado, na casa do vizinho (que seja!) cantando e repetindo Something in the way she moves...Obladi Oblada....Obladi Oblada...
Notícula: o Calixto é muito melhor que isso tudo dito, of course. Vocês vão ver, tenho certeza!!! Evoé, Calixto, evoé, bem-vindo!!!
FABIANO CALIXTO. Sanguínea. SP: Editora 34, 2007.
VERSOS DE CIRCUNSTÂNCIA
eu não entendia
e ela se mexia tanto ao meu lado
e aqueles brancos apertados
o ar condicionado gelando
tudo (os brincos dela,
o meu humor)
mais de uma hora cruzando
ruas, avenidas, parágrafos –
o livro gritando alto
para um mundo ensurdecido
depois de arrumar-se mais
algumas dezenas de vezes
o sol já estava no meio do céu
quando ela se levantou
foi então que percebi que
três pequenos pássaros
voavam em suas costas
CANTO DE INSÓNIA
alguém na vida da minha mulher sonha em plantar eu-
caliptos. na vida da minha mulher, alguém não consegue
se lembrar dos sonhos da noite anterior. No porta-retra-
tos da minha mulher a família está desfalcada. na bolsa
da minha mulher há balas de menta extraforte e troca-
dos para o ônibus. há também, na bolsa da minha mu-
lher, o clássico de Melville. e o que mais me intriga, entre-
tanto, é que alguém na vida da minha mulher sonha em
plantar eucaliptos. talvez isso me assuste um pouco; mais,
muito mais, que a sala vazia, que alguém que aguarda,
uma saudade de pedra, o amor na enseada.
RUÍDO ÚMIDO
o amanhecer é triste
a lua ainda expulsa
à pia da manhã
os últimos dos cães
vermelho amarelo prata
despertar é despedida
(com um lenço quadriculado
na cabeça, um elegante
sobretudo claro, mirando
algo delicado do outro
lado da rua, as mãos nos
bolsos, rindo, sabemos que ela é
Sylvia Plath, e que, depois de tudo,
a palavra vida não
a levou de volta para casa)
chuto pequenas pedras
observo pequenas trevas
que ainda sobrem nas lacunas
ornamentais e fixo
o desalento
UMA HISTÓRIA DE AMOR
Take 1:
Desmond pergunta
jogando no sofá da sala
nocauteado por um litro e meio de conhaque
por onde andará seu amor
Molly tenta arrumar os livros,
os discos, os dísticos
em seu quarto e
indaga ao espelho
a quem serve
a tal democracia
Take 2:
desaba na cama nem vê que o lençol
é xadrez e que não há mais
cigarro dentro da gaveta
do criado-mudo
interiores habitados por
violência de dissoluções
e ternura
ela caminha na neve
lábios russos e rachados
a água cai e estoura o estuque
repete-se (elegia voz)
a morte
nas trincheiras
(o silêncio é um
Único grito de dor
it is said to represent a mirror)
E-MAIL PARA PAUL MCCARTNEY
- ela alimenta os bem-te-vis
é fascinada pela ideia que
o pólen, que escapa das flores, fecunda
os óvulos de outras flores, e destes,
outras flores, mais pólenes, e outras mais
outras flores e outras –
uma primavera –
ela é o silêncio de qualquer madrugada
onde se acende um incenso –
ela é sempre – o máximo
é o mínimo dessa garota –
(a casa de abelhas longe/ as flores dos favos/
dezessete anos, para ser mais preciso/ o sonho/
o rosto aberto a sorrisos/ a tarde tecida na rede/
lâminas de ouro rubro/ júbilo e brisa fresca/
um delicado buquê canoro a jurar jades a Jude)
as canções
de que são feitas?
da mesma erupção de
azuis de que são feitos
os oceanos? ou
do mesmo tecido que
veste vôos de borboletas? seriam,
ainda, feitas de dias
a comer pães e queijos com quem
escolheste para, dia após dia,
comer pães e queijos?
da coleção de fuzilamentos
de mulheres
como Anna Akhmátova?
(não há (nem precisa de)
uma canção pode ser algo como o vôo
de uma gaivota sobre uma rocha marítima
ou como a alma de alguém que olha o fim de tarde
numa cidade destruída
pela guerra
SONETO
Para Dirceu Villa
verde que intacto se
despedaça na devoção
a uma árvore
sina qual do sol: soletrar-se
singular a tudo
flores
mínimas autodidatas levitam
sua moldura ao
silêncio que o vento
furta
o jardim (onde insetos
torcem o entardecer)
esplende paisagens
umas
flautas lidas
por sabiás
outras
com insônia de cigarras
abrindo
azuis
(um livro? uma labareda?)
uma borboleta (meditação
geométrica)
estilha o
que resta do inverno e
de tantas
vésperas abrupta
faz o jardim dormir
depois desata-se
com sua seda
do tecido
e cede
assento à
estação de deuses
na penumbra
edênico sem pêsames
o conjunto imóvel
respira
OW
agora, só
a queria
em meus braços
sentir em meu rosto os azuis
que habitam sua respiração
de flor
tocá-la (e sabendo
da imensa delicadeza
de sua pele, doar
seda aos dedos,
com um Van Eyck
encantamento
aos olhos)
e perceber que,
entre múltiplas probabilidades de
linguagem, você estava
toda arrepios
como num levante
no qual seu corpo
reivindicasse todas
as possibilidades de
movimentação de
minhas mãos
e agora
(delicadeza à temperatura
de sol às quatro da tarde)
seu riso junta-se à
doce indisciplina
e tudo muda
no seu rosto
no seu corpo
e no sistema solar
FABIANO CALIXTO. Música Possível. SP: Cosac Naify, 2006
Poema n. 12
começa o outono
dentro de Baudelaire
o céu desta estação
deixa tudo sem fim
rasgo outro poema
e fico mais lúcido
penso na morte
na certeza que ela tem
sento no sofá
perto do incêndio
que poderia, agora,
devorar esta dor
que mora também
nos livros, nos ladrilhos
Paisagem
para Ronald Polito
descendo a rua sem nome
corada de árvores, estas
entre o crespo e o nu,
a paisagem brota como de um aborto
tal a violência com que transtorna
as pupilas de quem vê
(aliás, as mesmas que vêem
o talhe no baú do caminhão abandonado
que parece ter sido causado pela mesma luz
que rasga parte
deste céu de meia-estação)
Horário de almoço, Mauá
andando e os olhos
na órbita de um projeto
de palavras.
(um menino me dá um tiro.
imaginário.
calibra os passos.
dispara risadas.
eu: vivamente morto:
respiro).
*
na biblioteca à
leitura do jornal
meninos (outros)
anoitecem
em notícia.
Criança
rosto maquiado com
sombra. não a que
escapa-lhe ao corpo.
outra sombra, por dentro,
guache de pranto
em cores-hematoma.
resto sob o soco,
sob o esgoto da
aldeia. catedral densa
de cólicas. cela de névoas.
sóbrio como a pálida morte
dentro do dorso. um dentro
vazio. último estalo. (sol a pino).
suspiro contido. útero de um tiro.
Poema n. 39
La carta que me mandaron
me piede contestación
(Violeta Parra)
insurgente: um povo
noite sem estrelas: um rosto
(um gay em São Francisco
um chicano nos Estados Unidos,
um negro na África do Sul,
um palestino em Israel,
um judeu na Alemanha,
um muçulmano na Bósnia,
um camponês sem-terra em qualquer país,
uma mulher desacompanhada no metrô às 10 da noite)
dentro cravado impregnado
um homem
insurge
alguma fé
ya basta!
(um coágulo de mel
na pele inimaginável
de um imenso
mar morto)
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