GRAFIA 2
Está no rio
o embrião da noite
O rio livre
com apenas o princípio evidente
de todas as formas
A água íntima dos lábios
TEMA 6
Água polícroma inumerável
corpo de ligação no centro dos subterrâneos
lábios superfície de lago
água interna com espessura de mar
AS OBRAS NAS FORNALHAS
Há rios de abas perversas como o Tejo, de barcos com destino
posto não às brumas
dos mares seculares cortados
mas a outras
de rios de súplicas,
de embarques nas praças
públicas e acenos de aço. Nos fornos
do ferro o fogo não tem a claridade
dos ferreiros debruçados
sobre as obras da paz.
O rio devasso inunda, trazendo
águas correntes com o destino,
posto em águas lodosas do Tejo,
de trabalharem aços contundentes.
ÁREA BRANCA / 17
Escrevo como um animal, mas com menor
perfeição alucinatória. Não sei imprimir as três linhas
convergentes do pé da gaivota, nem os pomos
leves da pata dos felinos. Só de uma forma rudimentar
escrevo, e estou a predestinar-me ao fim.
Depois de tantos séculos posso afirmar
que a escrita é uma escravidão dura.
Sei que é inútil e desumano mover as mãos
assim. Nem estou convicta de que seja digno
escrever desta maneira; é uma manufactura triste,
quando as mãos podiam apenas escavar
na terra ou no corpo. Podem ficar as palavras
somente na fita magnética como nas cabeças loiras.
Nada na infância nos deveria obrigar
a traçar as patas dos roedores repelentes
que são letras. O som da boca deve escrever-se
no écran, como a nova razão da nova máquina
da realidade. Na areia, porém, ou no mosaico molhado
terei de aperfeiçoar a minha pegada. Aproximar
dela a mão até alcançar a harmonia do trilho
do escaravelho. Uma fieira de montículos
e ranhuras até ao infinito que para ele é o mar.
Há quantos séculos os seres humanos me aprisionaram
no mito da caligrafia. Como tem sido penoso esse gesto,
há tanto tempo, e só eu o renego, porque sinto
a opressão com que alguém o tornou mais nobre
do que a minha fala ou a minha visão, únicas
propensões inatas. Prefiro aprender pormenorizadamente
a conservar uma impressão digital. Há um pensamento
abstracto e maquinal que decora a História com inteligência
mecânica, e por isso é supérfluo escrever. Só alguns
raros escribas, como os desenhadores de máquinas,
seriam necessários. E poderia descansar a cabeça
no regaço da lama.
Ensinaria à infância a gravar
no pó de talco a palma das mãos e a considerar as palavras
modulações da voz pura, sem a mancha embaciada
compacta que paira diante dos olhos sempre
que se fala. A mancha que se desloca no raio de visão
e desbota qualquer imagem como a chama de uma vela
com a fuligem constante a torná-la opaca.
ANJO DE PAPEL OU DE ÁGUA?
Se Tu não voltares estes poemas hão-de-tor-
nar-se trágicos. O texto vai revelar a
cicatriz de seda e os laivos claros do meu
choro. A contra-coração vou reescrevê-los.
Hei-de encontrar aqui uma placa lisa
para arrastar as letras até à regueira
turva. A imagem da água que era a de uma
simbiose entre Ti e a minha ideia de Ti
vai enegrecer. A podridão há-de
macerar o poema. Vou ser eu o autor
a quem a agonia devora juntamente
com um livro inerte. Quando Tu não
voltares eu saberei ler como um iluminado.
Os significados metafóricos levá-los-ei
até à ironia. A realidade levantá-la-ei
dessa valeta. Vai fascinar-me o torvelinho mor-
tal em que mesmo os poemas sem dor
sempre se desfazem. Quanto mais estes
em que se ostenta o Amor em páginas ás-
peras até eu perder a noção de estar presente.
Brandão, Fiama Hasse Pais. "Âmago (antologia)". Lisboa: Assírio & Alvim, 2010.
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