20120207

Sapho

Sapho. escultura de James Pradier _ 1852 _ Museu d'Orsay (Paris)






"... e perto dos templos derruídoss
a respiração do velho Mar..."
(Dora Ferreira da Silva, Hídrias)



cabeça amendoada inclino-me ao seio
festejo silêncio e brecha, vento
abrindo o véu que o guardava
pende o tecido em oferenda, eu
inclino e acendo
o riso ensimesmado, a ti
o que perturbaria?

o colar de ouro o colo
cravejado com juras e sinais
a serpente aninhada ao pulso
o gesto de estar
sedutoramente para dentro

sentada neste penhasco, tendo
a calda do tecido ventando em mim 
o mar está
satisfeito

com a lira ao lado
a antiga tartaruga de Hermes
o gozo fundo de Apolo
Sapho
faixa nos cabelos, prensas
fivelas a deixar livre o pendor
de tecer sobre ombros
costas delicadas seios
um coração dependurado em cada
escuta, e é em ti que me movo
mar, amante

dentro de mim entregue refeito
apareço a sorrir - olho-te
não vês que olho
e diretamente só olho a ti

(ao redor da estátua
Outra mulher sedenta do contato
- primeiros olhos de ressaca -
fixa taxativa, a negação aos visitantes:
o pólen de guardar tempo, dentro de caixas
brancas e ameaças
as substâncias incólumes
a macular as estátuas: fora do vivo
não se pode
tocá-la)

o rosto um triângulo
os cabelos trigais adocicados
e é em mim que me chamo
chamando-te mar
amante

leda mão absolutamente
em concha
sabe o fim das pernas
coleadas em mel, hastes
de vime e vinha, uma ritualística
do desejo

ser este corpo em perfeita calma
culminada de estratégia e de perícia
címbalo convulsivo, pedraria lavra
serpente em riste a untar o punho
antes ou depois de cantar
antes ou ainda que cante
canto azul marinho, pinhais, distância
e clara

repleta de iguarias
o olhar marmóreo o busto
ao contrapelo do tangível
lira cornucópia de um couro
exposto e esconso
feito para ti e de ti oculto

são sete as cordas da lira
e o labirinto no casco que
o colcheio do som abriga

invento
um rio apenas com este gesto
uma inclinação de cabeça para o Tejo
este aprumo de puro arder mar
amante

estrondo mortalmente silencioso
a tua queda dedicada ao olho
um busto levemente ácido
no vento alto desta falésia
não saberás?

tem ainda a lira Dioniso
seus cachos rugindo escorrendo
pela lateral do leste

ergue firme a mão direita e circunda
a taça a qualquer imagem que voe
é agradável sentar-se ali, nos despojos
da cria da pantera, homens, mares
junto à mão a taça
à cintura e dentro dela
bebendo
o pássaro entusiasmado

assim será a pureza das rolas
curvar-se alta ao poço
do que impele Baco
atrás de ti, Sapho
de mim, rente em tua queda
desmembrado o ciso dos triângulos
nas noites longas e afiadas
nus em bosque indistinto
- sagradas

a taça de Dioniso a voz
de Sapho a lira
de uma noite
inquebrantável

protejo, projeto, não saberás
se ajeito os olhos no colo do firmamento
ou se fito quão longe do mar
o repouso agitado dos teus membros

não saberás, tenho os olhos claros

e este declive em minha face
enlaça dedicada maneira
de entoar a lira com a lira
deitada ao lado


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este poema (incompleto, ainda, cheio de lanhos) foi escrito numa tarde de 2010 no Museu d'Orsay, na companhia de Marcelo e Lilian. É dedicado à memória de Sophia de M. B. Andresen e Dora Ferreira da Silva. Hoje o querido Claudio Daniel o rememorou em seu blog e, aproveitando a ocasião, lanço-o além-mar (mar_amante) para brindar o aniversário de Yvette Centeno.

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