20121010

astrologia e literatura: nas órbitas de Pessoa




Começo esta fala dizendo da afeição que tenho pelo assunto, em todos os seus aspectos. Durante o tempo em que venho estudando e lendo temas da astrologia cada vez mais fico encantada com a riqueza dessa linguagem antiquíssima do homem. Este meu trajeto de estudo foi sempre combinado e entrecortado por diversos outros, como, com mais afinco, História e Literatura. Daí, talvez, eu ter sempre gostado de ler a astrologia, sobretudo, como uma linguagem. A imagem de uma via láctea visível na noite com seu alfabeto de estrelas me deixava, e deixa, propensa à poesia, propensa às viagens mais densas do imaginário, diante de um obscuro papel em branco, que é o céu, ilimitado. Desde que ficamos em pé, miramos estrelas. E nosso primeiro poema, numa pedra, deve ter sido o sinal de um sol, um corpo da lua, um laivo de marcos cintilantes, perspectivados em nosso olho, em nossa dimensão, naquilo que chamamos ‘o real’. Foi olhando o céu que começamos a escrever, e escrevendo o céu nós o inventamos, assim como, talvez, tenhamos percebido que nós também somos, como o céu, matéria ardente de nossa própria invenção. O céu, esse imenso convite à navegação, me pareceu, desde pequena, como uma língua secreta, nem estrangeira nem legível, mas prenhe de signos e sinais das coisas que ultrapassam tempo, espaço, compreensão. As estrelas formavam frases na língua que eu inventava para elas, antes mesmo de descobrir os outros versos que tantas pessoas já lhes haviam dedicado. Nomes, desenhos, rotas: Perseu, Cruzeiro do Sul, o califado das Plêiades, a suntuosa calda do escorpião, os vasos despejando água, rosas e leite e mel ao redor de abelhas, numerais de um tempo esquecido... o céu se mostrava um mapa de potentes desvendamentos, que, para além do visível, a astrologia nomeou e lhe deu uma história, uma linguagem. Aberta, errante.
Não me interessa, portanto, em relação à astrologia, pensar em termos de crenças, fidelidades, dogmas, ortodoxias. O que me fascina nisso tudo é sua história milenar e contínua, tão viva para os babilônios quanto para nós, linguagem que se estica e transforma, linguagem-polvo que muito se aproxima da arte, com seu desejo de interrogação das coisas e seu sonho de descoberta das ‘correspondências’ entre tudo. Não pede exatidão: pede lirismo, a astrologia. Seu leque de abordagens pode ir de uma exímia matemática às narrativas dos grandes mitos das mais diversas culturas. É o seio da linguagem humana, nosso primeiro murmúrio, nosso primeiro espelho móvel. E, como toda linguagem, é arbitrária. E, como toda linguagem, carrega em si o magma da busca, busca que nos leva a nomear as coisas e a esquecer-lhes o nome, e assim, renomeando-as novamente, numa troca constante com a vida e com o vivo, numa relação simbólica com a existência. A astrologia que eu amo, eu compreendo como um sistema de sinais com que dizemos o nosso nome e o que há de oculto nele e em nós.
Essa plasticidade da linguagem astrológica muito se aproxima e se enlaça daquilo que entendo como ARTE, que num amplo sentido, propõe-se a dar e fazer-se imagem transformada e em transformação de nosso curso, de nossa precariedade, de nossos registros. Essa grande interrogação do infinito: o que há para além e aquém daquilo que mediamos e nomeamos? Como compreender o nosso vínculo e a nossa diferença com as forças que nos rodeiam? Como entender a nós mesmos nesse nosso espelho íntimo, que é a linguagem? Até onde eu me digo ou as coisas me dizem? O que é que o céu me diz? Toda essa inquirição existencial, digamos, que está no bojo de cada primeiro verso e de todo último poema, talvez queira que, entre o começo e o fim da página em branco com que passamos a vida, uma breve imagem maravilhosa possa se dar, devolvendo-nos para além do nosso terror e suspeita cotidianos, uma sensação de alargamento do real. Dar boca às estrelas, colocá-las a cantar, como tem feito o homem desde que se sabe um ser de linguagem, é um exercício de considerar. Com + siderar, ou seja, rodar junto, existir em rodao na matéria movente que somos e que é, bater ritmado o corpo, ter um pulso-coração. É por isso que aprendemos que a ausência do ritmo pode ser um desastre. Estar atento ao céu, ao nosso céu, aquele que inventamos e que nos estimula a rodar, aquele que nos desafia e empreende em nós grandes jornadas, é uma maneira de nos ‘considerarmos’ humanos, comuns, siderados.
O desejo de conhecer possíveis correspondências entre nós e o mais que há em nós nos fez seres de linguagem. E quantas línguas podemos falar? E quantas línguas haverá? Cada linguagem humana carrega em si uma demanda de beleza, entendimento, consideração. Porque eclipsar o conhecimento que cada uma tem? Por que estigmatizar qualquer linguagem humana? Lendo o céu e seu tapete alado, inventariamos os sonhos que temos desde antes de podermos falar, fazemos do céu um Grande Livro ou Grande Poema onde cada um constelará um rosto, um retrato, um desejo, um pedido, uma história...
Fernando Pessoa, antes e depois do imenso Gênio que é, foi, sobretudo um homem que buscou ultrapassar o desastre da ortodoxia. Seu projeto de obra, que culmina no ponto áureo da heteronímia, foi um projeto contra qualquer preconceito quanto às diferentes formas de conhecimento, suas diferentes linguagens. Por isso, sempre que se dizia ou se afirmava algo, Pessoa, em seguida, no mesmo verso, se contradizia e se negava. Seu nome é um imenso buraco negro, uma grande Máscara, que abrigou uma constelação de escritas e gêneros literários, um povoado de seres absolutamente estranhos e diferentes entre si. Tudo está ali, nessa experiência escrita que foi Fernando Pessoa.
Ele é, portanto, um exemplo de um criador amoral¸ extremamente ético, que sabe que toda linguagem é uma compota de sonhos e de vazios, de ilusões e de fabricação do real. Pessoa vai investir seu trabalho, portanto, nesse tema que é um dos mais densos e inquietantes da arte que é o da metalinguagem, a investigação dos limites e dos reflexos das linguagens que usamos. Ele sabia que para ser outros precisava sê-los em linguagem, em linguagens, digamos. Experimentou o cristianismo, o gnosticismo, a cabala, os ensinamentos templários, o rosacrucianismo, a dúvida, a ironia, o ceticismo, a monarquia, o republicanismo, a sexualidade, a assexualidade, o tédio, a euforia, o patriotismo, o deboche com a pátria, a solidão, a amizade, os mitos, os astros, os folhetins, as palavras-cruzadas: hoje sabemos que Pessoa teve mais de 70 heterônimos. Com 7 anos, veio um tal de Chevalier des Pas, com quem dialogava. Depois, Alexander Search, um poeta de língua inglesa afeiçoado aos cultos satanistas do ocultismo do fim do século XIX; ainda depois, um tal Vicente Guedes, tradutor; um tal Dr. Gaudêncio Nabos, humorista e jornalista;  um outro chamado Barão de Teive; um Joaquim Moura Costa, poeta satírico; ainda, o nosso Bernardo Soares, do Livro do Desassossego; António Mora, filósofo que teorizou o neopaganismo; e, além desses e outros, a tríade fundamental de sua poética: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. E ainda, é claro, o seu ‘heterônimo astrólogo’, chamado Raphael Baldaya.



Na imagem disposta acima, vemos o mapa do poeta feito por si próprio e uma nota tirada do espólio de Pessoa (Biblioteca Nacional de Lisboa) em que ele se apresenta como R. Baldaya, informando o tipo de trabalho que faz como astrólogo e ainda coloca os preços das consultas! Provavelmente essa nota teria sido feita para ser veiculada em anúncios de jornais. É curioso notar que Pessoa a escreve em inglês, e como diversos dos mapas e estudos astrológicos que fará também assim serão, mesclas de inglês com português, vemos mais uma mostra dessa vontade de muitas línguas e domínio delas, como se ele mesmo fosse um grande orquestrador desse ‘drama em gente’, dessas pessoas e línguas que o habitam.
O interesse de Pessoa pela astrologia parece vir desde cedo, mas as primeiras notas que encontramos no seu espólio vem de 1908 – 1909, quando ele contava com 20 anos. Além de, portanto, empregado em firmas comerciais (nas quais ele cumpria a função de redator de cartas comerciais ao estrangeiro), Pessoa também exerceu o ofício de astrólogo. Há, em sua arca, mais de 470 fragmentos dedicados à astrologia: de teorias astrológicas a diversos mapas astrais que ele levantou, além de correspondências com estudiosos do assunto de outros países, como por exemplo, o mago-místico-exótico Aleister Crowley, que foi até Lisboa conhecer aquele sujeito que havia lhe dado, por cartas, sugestões a respeito de seu mapa.  Dos mapas levantados por Pessoa, constam os de D. Sebastião, Shakespeare, Milton, Goethe, Napoleão, Baudelaire, Mussolini, Salazar, entre outros.
Há uma ocasião curiosa e que convém aqui narrar, para que fique visível o lugar que a astrologia ocupou no dia-a-dia de Pessoa, ao longo de toda sua vida, e com especial ênfase nos anos 1909 – 1915. Em 24 de julho de 1915, Pessoa escreve uma carta ao editor do livro de Alan Leo “Mil e uma natividades notáveis”, pedindo-lhe que lhe envie o mapa de Francis Bacon, o filósofo, escritor e ensaísta do séc. XVI. Pessoa, nesta carta, se apresenta como ‘estudante de astrologia’ e diz que, lendo o livro de Alan Leo, havia ficado curioso em relação às notas sobre o mapa de Francis Bacon, pelas seguintes razões: (diz Pessoa) “Meu principal interesse [no mapa de Bacon] está no desejo de ver o que, no horóscopo dele, registra sua peculiar característica de ser capaz de escrever em diferentes estilos e sua habilidade para ‘transpersonalização’ (...). Eu também possuo estas características. Sou escritor, e sempre achei impossível escrever com a minha própria personalidade. Sempre me peguei, conscientemente ou não, assumindo o caráter de alguém que não existe, sob cuja intervenção imaginária me ponho a escrever” (BNP/E3, 114-60).
Ora, Pessoa é um geminiano, com ascendente em escorpião e lua em leão. Desde o princípio do projeto ‘consciente’ e ‘autoral’ da heteronímia, que envolve portanto, a criação estética de Caeiro, Reis e Campos, ele esteve buscando-a, também, na astrologia. Astrologia e literatura são engrenagens amantes que, na obra de Pessoa, levam uma à outra, e irradiam um verbo luminoso. É fantástico como ele pôs em prática essa despersonalização geminiana, símbolo de uma mente ágil e inquieta que quer conhecer tudo de todas as maneiras. A qualidade aérea de gêmeos, somada à densidade líquida do ascendente em escorpião, fez com que esse desenho astral de si mesmo se disseminasse num dos projetos estéticos mais radicais e ambiciosos (como convém a uma lua leonina) do século XX. Pessoa, somando, portanto, Gêmeos, Escorpião e Leão, conforme a sua compreensão destes signos, será o investigador das grandes descidas a mando de uma Grande Obra: a curiosidade mental envolvendo o mistério do nascer e do morrer, buscando uma maneira de transformar-se em figura capital, ou Supra-Camões, de seu tempo. Esta faceta será mais visível naqueles poemas assinados por ele-mesmo, ou seja, Fernando Pessoa ortônimo, como por exemplo este: 



Gêmeos, regido por mercúrio, fala-nos desse mensageiro, esse emissário, esse sujeito que é apenas voz onde a mensagem (de alguém desconhecido) se processa... o autor, o poeta, é aqui entendido como esse mensageiro, que cumpre “informes instruções de além”, ou seja, cumpre ordens que desconhece, está a serviço do desconhecido. Não é, aqui, possível uma unidade de compreensão, uma compreensão total deste ser, já que ele se manifesta enquanto tradutor de uma outra voz, que se desconhece... Rei, Deus, alguém? Não se sabe... Não se sabe mesmo se “existe o Rei que me mandou”. Tudo é dúvida e mistério, uma linda tradução em poema de uma abordagem de sua própria carta natal e dos sinais milenares que a astrologia nos oferece como linguagem criativa. No poema, e em toda a obra do Fernando Pessoa ele-mesmo (o ortônimo) transparece-nos esta atmosfera de névoa e indefinição, em que o sujeito se busca e se erra, sentindo as coisas atravessarem-no. Essa bruma de um aquém ou além vida, à qual a sensibilidade escorpiana está sempre ligada, encontrará expressão na dúvida e no paradoxo que experimenta o sol geminiano. Outro exemplo dessa navegação poética que Pessoa realizou a partir de seu próprio mapa está neste outro poema do qual leremos apenas um excerto:


Só com o primeiro verso já podemos vislumbrar um exercício poético fantástico de concisão com seu mapa astral: “Meu pensamento é um rio subterrâneo”... Se gêmeos é o signo do pensamento múltiplo, que não cessa de voar pra cantos diversos, um pensamento incessantemente outro, escorpião nos fala dessa atmosfera úmida e fria dos rios subterrâneos, os pântanos, as águas quase paradas e quietas que nos expõem a nossa própria escuridão. É dentro desta paisagem, que podemos dizer que, sim, vem sim de um imaginário astrológico, que Pessoa anunciará uma estética e uma Obra.
E como ele é muitos, é vário, também seus heterônimos terão seus mapas astrais. Depois de existirem como poema, existirão como desenho do céu. Vê-se novamente: o duplo motor possível no elo entre a linguagem poética e a linguagem astral. Vejamos o que dirá Pessoa a respeito da feitura desses mapas, dos heterônimos, e como ele nos diz da importância de Caeiro a partir de seu mapa natal, Caeiro que será considerado seu mestre e mestre de Ricardo Reis e Álvaro de Campos:






Quem é que perguntará se Caeiro deveras existiu? Cabe essa pergunta? Pessoa aqui parece rir ou motejar de quem espera da astrologia mais do que o imenso motivo de dar alma à alma. Ele entendeu em si essa envergadura estética e ética que se chamou Alberto Caeiro, e esse não só lhe ensinou como ensinou aos outros que nele habitavam. Como não ver nisso tudo uma amostra visível e palpável de uma constelação? Pessoa, no entrelaçar de astros e literatura, além de diversos outros assuntos e temas e formas de conhecimento, nos legou um exemplo genial de que tudo se soma, tudo se toca, tudo é válido como maneira de compreensão da existência, desde que nenhuma das formas e forças se excluam, desde que tudo conviva tenso no drama paradoxal do maravilhamento e da dúvida. Pessoa constelou diversos saberes e foi o que é, nosso maior poeta.
Caeiro será mestre porque está relacionado ao fogo e ao número 1, número de Áries ou do Carneiro (Ca-rn-eiro), com o ascendente também ígneo posto em Leão. O signo de Áries, em linhas gerais, é aquele relacionado à visão pura, à visão da infância, que sabe se encantar com o exatamente real, sem se inquietar com o que possa haver dentro, através, ou fora do visível. O campo do real e da realeza de Caeiro será o campo do visível. E ele será mestre porque deixará poemas que nos ensinam a ver, a ter o olhar nítido como um girassol, direto, claro, transparente.  Essa inocência sonhada, quiçá, seja aquela que arrebanhará todo amante da linguagem, esse desejo de que o visível e o dito, a coisa e seu nome se façam um só, óbvio, bom e indubitável real. Em Áries é curta a distância entre visão, pensamento e ação: há aqui uma ‘espontaneidade’ quiçá perdida, essa saudade de uma via simples. Dentro de um Pessoa, aquele que visitamos brevemente, guiado por uma voz misteriosa e inefável, que o enche de bruma e névoa, há este desejo solar de uma infância prolongada, chamada Alberto Caeiro. E tudo isso feito do abraço de mapas e palavras, céus e símbolos, linguagem e linguagem: as miríades de nossa voz múltipla cortejando o mundo e a matéria do vivo em que vivemos, respiramos e deixamos um verso.



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obs. este texto foi lido no PLANETÁRIO DE SÃO PAULO (Ibirapuera) na noite de 2 de outubro de 2012. Fez parte da programação paralela da 30a Bienal de São Paulo, e eu lá cheguei pelo convite do meu querido Fernando Marques Penteado, que está lá, radiante, com sua casa têxtil, com seu mapa celeste entretecido, bem ao lado do Bispo do Rosário, num lindo-enlace, que é como deve ser. Lá na Bienal. Vai ver, te digo. Agradeço ainda ao Walmir Cardoso e João Paulo Delicato, astrônomos atentos, que nos mostraram que a constelação de escorpião é também uma enorme ema ou ainda uma cascavel e ainda tanto mais. De volta aqui, ao texto, te digo também: como é um texto que foi feito para ser lido, guarda essa marcação oral. E, sim, além de falante é um texto brevíssimo, coube a mim uns 20 minutos mais ou menos, e 20 minutos mais ou menos é um sopro de areia dentro dessa arca monumental chamada Fernando Pessoa. Peço perdão por isso. Caiero é deveras tão mais complexo que um girassol. Tão complexo quanto. O que não coube na voz nesta noite. De todo modo, o que mais do que querer falar e falar sobre Pessoa e astrologia? A noite foi linda. O planetário povoado. O céu aberto. Projetar mapas e poemas na noite densa da abobadada cúpula dos olhos, isso não se esquece. Agradeço-te Fernando. Por essa noite, e essa amizade que chega. Deixei lá (e agora fica aqui) apenas a carmina, o encanto, de enunciá-lo: C A E E E E I R O... E deixo a deixa de que tudo segue no arado. Astrologia + Pessoa são paixões arcaicas, suficientemente para toda a vida, até o fim. Assim assado, quem quiser seguir nesse papo comigo, estou chamando, de mãos soltas, o encontro. Sim. 



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