este filme pode ser um banho de água fria, mas dos revigorantes; há que ter uma dose de tempo e de ausência de expectativa, ou seja, uma antidose de ansiedade, o que é muito ou pode ser muito difícil.
o filme é em preto e branco, mudo. quase-mudo. ouve-se muito as vacas mugindo, os passarinhos, os resmungos das pessoas. mas nenhuma conversa audível, nenhuma fala que se possa compreender. nenhuma nitidez na voz. então é assim: vc, de cara, é lançado nesse mundo, nesse dia, logo depois do título do filme, que não especifica nada (é em russo, eu não falo russo) e pronto. se vc leu a sinopse e sabe que trata-se de um documentário, te digo: isso pouco importa. não há nada que sustente a defesa de ser documentário ou não ser documentário. e essa é das coisas mais interessantes deste filme. documentário? e o documentário não é uma ficção?
estamos numa colônia para doentes mentais. mas de verdade: não é tão óbvio assim. além de alguns instantes de close íntimo numa desfiguração paralisada de um rosto capturado pelo nada, além de um balbuciar cadenciado de criança na boca de pessoas idosas, e além da mecanicidade de alguns gestos, exaustivamente repetitivos (mas nós não fazemos isso? e quiçá não faremos mais ainda quando ficarmos velhos?) nada nos atesta a doença mental. as pessoas são muito a gente. ou podem ser, se a gente se libera um pouco dos controles. da mesma forma, nada atesta o documentário. não há uma voz narradora externa, aquele deus ex-machina onisciente que 'explica' o real e o significado das vidas à mostra, não há entrevistas dirigidas ou respostas esperadas, não há uma construção de um espetáculo. há a morosidade lenta, insidiosamente lenta, de um cotidiano, de pessoas mais velhas, quiçá doentes mentais, numa comunidade rural, em seus afazeres, em seu dia-a-dia. achei digno isso, essa postura da câmera, do diretor: ele não quer explicar o outro, ele não põe legenda sobre a situação. vc fica então tão desamparado como qualquer outra pessoa, que chegasse ali e desse de cara com aquela vida, simultaneamente tão comum e tão estranha. são estranhos que permanecem estranhos. o olhar da câmera não invade a imagem dos outros, apenas roça nela (seremos então o voyeur sádico?). ninguém nos é apresentado, nenhum nome é dito. a gente entra ali de intruso mas permanece com uma certa distância, testemunhando, observando, mudos também.
todo o tempo do filme opera essa micro tensão. há horas q aquilo tudo, aquele cenário lindo (sublimado em beleza pelas lentes preto e brancas: relvas, pastos, uma casa de madeira, lenha, batatas, terra, rostos) é incrivelmente apaziguador. (o efeito pb é marca desestabilizadora do diretor, claro. a cena é com doentes mentais mas o cenário é pintado de branco e preto. e ele mostra isso: no mais extremo do documentário - onde uma câmera simplesmente o mais próximo do simplesmente, testemunha, ainda assim, há escolha, há estética, há ficção e há posicionamento ético). nesta hora, acalmados pelas imagens até (ouso) paradisíacas, estamos em utopia, finally? mas utopia pode ser 'isto'? uma colônia de doentes mentais?
primeiro me lembrei de Caeiro, e da 'doença de Caeiro'. estamos ali apenas para 'olhar', e não para pensar? pensar é estar doente dos olhos, diria o mestre. mas o que olhamos ali? o que aquele bucolismo carrega? aí vc se lembra de lars von trier (Os Idiotas) de kafka (A Colônia Penal), não só de thomas morus. também me lembrei dos comedores de batata do Van Gogh. e aí o clima muda, dá uma angústia danada estar ali testemunhando essa 'vida besta' mais besta que toda 'vida besta', porque de uma falsa ingenuidade, de uma ingenuidade não dirigida, ou inconsciente, que acaba sendo nada mais do que um abuso de passividade, e aquelas pessoas vão se assemelhando aos bois, vão mugindo como eles. há feixes de tragédia nesse bucolismo mudo.
muito difícil. um filme raro, nesse sentido, de desacomodar, desassossegar. eu dormi alguns pedacinhos, confesso (há um marasmo sonolento, e dormir é sempre um jeito de esquecer, ainda mais às 14hs da tarde, numa sala escura e fresquinha). noutros pedaços, eu me vi 'narrando' as cenas, 'fechando-as', concluindo-as, explicando para mim mesma. só ao final que as afirmações narrativas, a esmo, viraram perguntas. porque era simultâneo estar bem e estar mal, ali.
o cotidiano de plantar, colher, espalhar o feno, reunir o feno, comer, acordar, etc lembra-nos uma idade média suspensa em cada um, quando a obviedade repetitiva dos dias acorda em nós uma memória de que continuamos os mesmos (orgânicos, repetitivos, desacordados, inúteis, belos, belíssimos). vc perde a referência da utilidade dos gestos, porque há o problema da 'consciência'. (eles escancaram isso: enquanto um está espalhando o feno, o outro está reunindo-o de volta, circularmente, como a roda da fortuna). vc perde a referência da utilidade dos gestos, porque talvez não seja possível nos percebermos construindo 'alguma coisa'. e se percebêssemos, adiantaria? estamos, mesmo, construindo coisas? alguma coisa? edificamos algo sobre a brevidade morosa de nossa organicidade tão próxima da dos bois, da relva, da circularidade dos dias? essa nave louca, então, não é o nosso quintal? porque é que esses homens e mulheres aí na tela seriam mais idiotas do que nós? ou ainda, mais intimamente: em que mesmo somos diferentes? não localizo. nenhuma voz acalma a dúvida. eles não parecem infantilmente livres dentro dessa passividade? não sei. quem é que é livre, afinal?
não escutamos nada dessas pessoas que são mais pessoas que personagens. personagens somos nós, que testemunhamos isso tudo e depois tomamos sorvete. não sei.
o filme certamente mereceria um poema.
o filme certamente merecerá um poema.
Comedores de batata. Van Gogh. 1885 (Museu Van Gogh - Amsterdã)
Comedores de batata. Van Gogh. 1885 (Museu Van Gogh - Amsterdã)
Um comentário:
compreendo tudo isso perfeitamente, mas mais interessante do que o filme é a sua leitura dele. Faça o poema então! bjs Tinoco
Postar um comentário