Paris, 13 de julho de 1914
Café Royal
(...) Meu querido amigo, juro-lhe que não exagero, que não literatizo, que não deixo a minha pena seguir inadvertidamente: eu a cada linha mais sua que leio sinto crescer o meu orgulho: o meu orgulho por ser, em todo o caso, aquele cuja obra mais perto está da sua – perto como a Terra do Sol - por o contar no número dos bens íntimos e em suma: porque Fernando Pessoa gosta do que eu escrevo. Não são declarações de amor: mas tudo isto, toda esta sumptuosidade e depois a grande alma que você é, fazem-me ser tão seu amigo quanto eu posso ser dalguém: encher-me de ternuras, gostar, como ao meu pai, de encostar a minha cabeça ao seu braço – e de o ter aqui, ao pé de mim, como gostaria de ter o meu Pai, a minha Ama ou qualquer objeto, qualquer bicho querido da minha infância! Só lhe peço que me desculpe a maneira como me exprimo – mas a única como posso me exprimir em inteira sinceridade. E lastime-me um pouco também. Creia, meu querido Fernando Pessoa, percamos por completo as ilusões: eu toco o fim – um fim embandeirado, mas em todo caso um limite. Acabei já – acabei após a minha chegada aqui. hoje sou o embalsamento de mim próprio. Não tenho estados de alma, nem os posso ter já porque dentro de mim há algodão-em-rama (o algodão-em-rama que há dentro dos animais naturalizados)... Estados de alma, ânsias, tristezas, ideias, grandes torturas de que saíam os meus livros tudo isso acabou... Ilusões de floria, ‘de espanto’ já não existem mais em mim. Entusiasmos do que eu sou, tão pouco, porque se mais sei o que sou. Sou o que quero – o que queria ser, mas sei o que sou. Logo... Meu amigo, eu na vida andei sempre para ‘gozar’, para ser o personagem principal da minha vida – mas hoje já não o posso ser, porque sei de cor o papel – e desempenhar-me só me pode fazer bocejar no grande tablado hoje para mim coberto de serapilheiras – serapilheiras em que se volveram, tapetes roxos que, na verdade, nunca existiram, mas que eu podia, sabia imaginar... depois eu sou uma criança – tantas vezes lho gritei – e a criança hoje vê a sua idade terminada, bem terminada – terminada há muito, mas só hoje, depois da partida do meu Pai para África, da casa desfeita, terminada em ilusão. Para trás de mim existe o irremediável, o que nunca mais se pode repetir mesmo em miragem. (...) Estou só – dos outros – só de mim para sempre. (...) Meu amigo creia-me, tudo quanto doravante eu hoje escrever são escritos póstumos. Infelizmente não me engano – como não me enganei na minha volta a Paris. Não lhe dizia tantas vezes que não me via com uma obra muito longa? Entretanto qual será o meu fim real? Não sei. Mas, mais do que nunca acredito, o suicídio... pelo menos o suicídio moral... Acabarei talvez em corpo exilado da minha alma! (...) E se assim é, se não me engano: eu fui o que quis: a minha obra representa zebradamente entre luas amarelas aquilo que eu quisera ser fisicamente: essa rapariga estrangeira, de unhas polidas, doida e milionária... Perdoe-me mais uma vez tomar-lhe tempo com tudo isto (...). Adeus meu querido Fernando Pessoa. Perdoe-me tudo, tudo.
E um grande, grande abraço do seu pobre
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