[notículas prévias,
apossamento de si na encenação da morte e das várias despedidas____ morte como ‘hora triunfal’ da vida? hábito de ser-se, reconhecer-se, único meio garantido de uma construção de si? suicídio como estranha conquista do sentido da vida____ o ‘fazer teatro’ e o legado da imagem suicida: uma maneira de fixar-se na memória dos outros? uma maneira de não desaparecer? suicídio como extremo apego à vida? afinal, acima de tudo, eu amo a vida_____ legado: dizer a morte (vocabulário enunciativo, declamatório) e encomendar o sentido da obra (vida): a morte é, antes de tudo, a escrita da morte (Blanchot)____ ao outro: cartas de amor ou de morte? o suicídio para falar de amor, como demonstração de afeto, de carinho____ para te chamar aqui, chamar tua atenção____ atração pelo abismo: pela beleza trucidante do espetáculo fúnebre: o inchaço da matéria-morta, a duração pelo que apodrece]
Paris, 8 de novembro de 1915
Café de la Paix
Meu querido amigo, (...). Estou hoje muito triste e muito infeliz. Mas logo vou ao teatro. Sempre atapetar a vida. (...) Adeus. Um grande, grande abraço de toda a Alma,
o seu M. de Sá-Carneiro
Paris, 29 de dezembro de 1915
(à noite)
Meu querido Amigo,
(...) Não sei como isto há de ser, decididamente. Eu bem quero, mas não há maneira. A tômbola gira cada vez mais desordenada. Sobretudo não posso estar um momento quieto. É uma febre, é uma febre. Quando vou à casa do F. da Costa escangalho sempre as franjas dos tapetes – e outro dia parti-lhe um cinzeiro. Hoje saí de casa. Estive já no terrasse do Americano. Não sosseguei. Agora, não sei por quê, estou na Taverna Pousset, que é um café com que eu embirro imenso. Depois tenho o jantar. Depois outro café. Mas que raio hei-de eu fazer? E antes de ontem pedi 500 francos para Lisboa.
Provavelmente não mos mandam. Também não preciso deles para nada. Mas é um horror, um horror. Uma vertigem de aborrecimento – um comboio expresso de anquilose. Aborrecimento na alma, por todo o corpo: e o que é pior! nos intestinos. Borbulhas na testa e no pescoço. Tudo isto, juro-lhe, provocado pelo meu estado de alma impossível, e cada vez mais sem remédio. Uma vontade imensa de me embebedar, mas nos ossos. (...)
Paris, 31 de março de 1916
Meu querido Amigo,
A menos de um milagre na próxima 2ª feira, 3 (ou mesmo na véspera) o seu Mário de Sá-Carneiro tomará uma forte dose de estriquinina e desaparecerá deste mundo. É assim tal e qual - mas custa-me tanto a escrever esta carta pelo ridículo que sempre encontrei nas ‘cartas de despedida’... Não vale a pena lastimar-me, meu querido Fernando: afinal tenho o que quero, o que tanto sempre quis – e eu, em verdade, já, não faria nada aqui... Já dera o que tinha que dar. Eu não me mato por coisa nenhuma: eu mato-me porque me coloquei pelas circunstâncias – ou melhor: fui colocado por elas, numa áurea temeridade – numa situação para a qual, a meus olhos, não há uma outra saída. Antes assim. É a única maneira de fazer o que devo fazer. Vivo há 15 dias uma vida como sempre sonhei: tive tudo durante eles: realizada a parte sexual, enfim, de minha obra – vivido o histerismo do seu ópio, as luas zebradas, os mosqueiros roxos da sua ilusão. Podia ser feliz mais tempo, tudo me corre, psicologicamente, às maravilhas: mas não tenho dinheiro. Contava firmemente com certa soma que pedira ao meu pai há 15 dias. (...) É mesquinho: mas é assim. (...) Não me lastimo, portanto. E os astros tiveram razão... Hoje vou viver o meu último dia feliz. (...) Não me perdi por ninguém: perdi-me, mas fiel aos meus versos: “Atapetemos a vida / Contra nós e contra o mundo...”. Atapetei-a sobretudo contra mim – mas que me importa se eram tão densos os tapetes, tão roxos, tão de luxo e festa... Você e o meu Pai são as únicas duas pessoas a quem escrevo. (...) Adeus. Se não conseguir arranjar amanhã a estriquinina em dose suficiente deito-me para debaixo do ‘Métro’... Não se zangue comigo.
3 de abril de 1916
Adeus, meu querido Fernando Pessoa.
É hoje segunda-feira 3 que morro atirando-me para debaixo do ‘Métro’ (ou melhor do ‘Nord-Sud’) na estação de Pigalle. Mandei-lhe ontem o meu caderno de versos mas sem selos. Peço-lhe, faça o possível por pagar a multa se ele aí chegar. (...) Vá comunicar ao meu Avô a notícia da minha morte – e vá também ter com a minha Ama à Praça dos Restauradores. Diga-lhe que me lembro muito dela neste último momento e que lhe mando um grande, grande beijo. Diga ao meu Avô também que o abraço muito. Adeus, o seu pobre
Mário de Sá-Carneiro
17 de abril de 1916
Meu querido amigo,
Recebi a sua carta e o seu postal. Não tenho nervos para lhe escrever, bem entendido. A minha doença moral é terrível – diversa e novamente complicada a cada instante. O dinheiro não é tudo. Hoje, por exemplo, tenho dinheiro. Mas você compreende que vivo uma das minhas personagens eu próprio, minha personagem – como uma das minhas personagens. De forma que se pode ser belo, é trucidante. E o pior é que é muito belo de maneira que nem o meu admirável egoísmo me pode desta vez salvar. Ainda tenho uma esperança – mas não me parece. Não sei onde isto há-de ir parar. Porque a minha situação – encarada de qualquer forma – é insustentável. Um horror. (...)
18 de abril de 1916
Café Riche
Unicamente para comunicar consigo, meu querido Fernando Pessoa. Escreva-me muito – de joelhos lhe suplico. Não sei nada, nada, nada. Só o meu egoísmo me podia salvar. Mas tenho tanto medo da ausência. Depois – para tudo perder, não valia a pena tanto escoucear. Doido! Doido! Doido! Tenha muita pena de mim. E no fundo tanta cambalhota. E vexames. Que fiz do meu pobre Orgulho? Veja o meu horóscopo. É agora, mais do que nunca, o momento. Diga. Não tenho medo.
No dia 26 de abril de 1916, às 20hs, Sá-Carneiro se suicida, no seu quarto no Hotel de Nice, em Paris
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Carta de José Araújo a Fernando Pessoa
Paris, 10 de Maio de 1916
Ex.mo Senhor Pessoa:
Recebi hoje sua carta, desculpe não lhe ter respondido como dizia no meu cartão, mas o Carlos Ferreira ficou de me dar o seu endereço, e como se tinha esquecido, ainda hoje estou esperando o mesmo. Já aqui tinha uma carta preparada para o meu amigo, carta que inutilizei pois preciso de ser um pouco mais extenso.
Vou pois contar-lhe minuciosamente (?) o triste fim do nosso pobre Sá-Carneiro; mas antes vou dizer-lhe em duas palavras como o conheci e como em tão pouco tempo, eu tive um dos meus melhores amigos, e com certeza o mais íntimo. Conheci-o há uns seis meses apresentado por Carlos Ferreira num dos restaurantes do Faubourg e desde esse dia, eu tive um bom amigo e vice-versa, não sei explicar-lhe como se deu este caso bem extraordinário de mais que eu não sendo um escritor nem poeta, mas pertencendo ao comércio, cousa bem material; não sei; um mês depois não se passava um dia sem que nós estivéssemos conversando em qualquer café, horas e horas, por aqui já o meu amigo deve calcular quanto desgosto tive com a sua morte, e como ele e mais ninguém me compreendia. Desculpe-me e a esta mal alinhavada carta mas sou nervoso, portanto não se admire de alguma falta. Foi no mês de Março pouco mais ou menos que Sá-Carneiro teve a infelicidade de encontrar num dos cafés de Montmartre uma rapariga por quem teve grande interesse, digo interesse porque ainda hoje não sei se era amor, simpatia, ou ódio, não sei; desde então Sá-Carneiro mudou bastante, vinha aqui ao escritório sempre apressado, havia mesmo semanas que só vinha aqui três vezes, e mais nada. Assim, chegava aqui e dizia-me: Araújo preciso falar-lhe venha comigo a um café; saíamos e então ele coitado, contava-me o que se passava: que não podia continuar assim, impossível, impossível, aquela mulher; um mistério, um horror, e por aqui fora muito nervoso, e contava-me o que se tinha passado (antes tenho que lhe dizer que ele tomava estricnina em grande dose). Muitas vezes eu perguntava-lhe se ele realmente gostava dessa mulher, a sua resposta invariável era: Não gosto dessa mulher, juro-lhe que não gosto dessa mulher. Calcule o meu amigo o que eu podia fazer nesta situação:
Um dia, 26 entrou ele no meu escritório como costumava, depois de falarmos uns momentos disse-me - Araújo preciso que você vá hoje a minha casa ás 8 h, em ponto, sem falta. Assim fiz, quando entrei no quarto, notei que ele estava deitado, muito naturalmente perguntei se lhe doía a cabeça; foi então que ele disse - acabei agora de tomar cinco frascos de arseniato de estricnina, peço-Ihe que fique - corri logo abaixo a buscar um copo de leite, ao mesmo tempo dizia ao criado para subir com o mesmo, enquanto eu ia ao comissariado procurar um médico e ao mesmo tempo um automóvel para o conduzir a um hospital, tudo isto tinha sido feito rapidamente, quando subi com os dois agentes para o transportar ao automóvel, foi então que presenciei a cousa mais horrível que se pode imaginar. Sá-Carneiro agonizava, congestionado numa ânsia horrível, todo contorcido, as mãos enclavinhadas, momentos depois expirava; nada havia que o salvasse, eram 8 horas e 20 minutos, depois foi o quarto fechado por ordem dos agentes e eu fui ao comissariado prestar esclarecimentos. Às 11 horas entrámos novamente no quarto, o comissário dois agentes e eu. Sobre a mesa bem à vista estava uma carta para mim, mais atrás nova carta para o Pai, outra para o men amigo, e mais duas, uma para a tal rapariga, outra para Carlos Ferreira. Sobre o fogão uma folha de papel na qual escrito a lápis e em francês estava o seguinte. Declaro que mato voluntariamente peço p: assim (mim?) o cumulado (?), e para dar a cigarreira ao meu amigo Araújo como recordação, havia também espalhados sobre a mesa 5 frascos vazios de arseniato de estricnina, comprados em diversas farmácias. A rigidez cadavérica foi logo, momentos, digo uns 3/4 horas depois, estava vestido, penteado; horrível, os olhos muito fora das órbitas, a boca aberta, as mãos fechadas sobre o ventre, as pernas um pouco abertas, logo depois da morte tomou uma cor esverdeada que se acentuou pouco a pouco. Depois de revistado por um policia só foram encontradas duas moedas de 10 cêntimos no bolso do colete. Depois de todas estas coisas a que tive a coragem de assistir, foi a porta novamente fechada. No comisariado tomei a responsabilidade sobre o enterro pois o pobre amigo como sabe só aqui tinha eu e Carlos Ferreira como mais fntimos. Fui a casa de Carlos Ferreira e dei-lhe conta do sucedido eram meja-noite ou 1 hora não me recordo.
Só no dia 28 às 8 h. é que foi metido num caixão e isto por grandes reclamações, de contrário ainda estaria no dia 29 em cima da cama. Quando entrei no quarto recuei apavorado, durante a noite o cadáver inchara duma maneira tal que todo o fato tinha rebentado, da boca, do nariz, olhos, ouvidos saía um sangue preto e junto a tudo isto um cheiro insuportável de decomposição. Mandei entrar os homens que traziam o caixão mas não servia era pequeno, note o meu amigo que ninguém se tinha enganado, mas ninguém contara que aumentaria tanto, veio pois um outro caixão (o maior que havia) mesmo assim ainda custou, antes tinha pedido à dona do hotel para me dar um lençol que serviria de mortalha, assim fez. Com grande trabalho foi colocado no caixão, não imagina o meu amigo, estava completamente negro cheio de sangue assim foi envolto na mortalha aparafusado o caixão, foram-lhe passadas umas correias, com receio que rebentasse durante a noite.
No outro dia (29) foi o enterro, modesto, mas decente, não se disse nada, pois não o podíamos mesmo fazer; e assim foi enterrado no cemitério de Pantin, assisti a tudo e só depois de a última pá de terra cair é que me vim embora. Tenho a dizer-lhe que está em coval separado que aluguei por cinco anos. Aqui findo a minha triste narrativa e peço mais uma vez me perdoe a maneira como está feita.
Todos os papéis que encontrei e cartas, tudo está fechado numa mala, o mesmo também com fatos e roupas brancas, chapéus, escovas, tudo inclusive os mais insignificantes objectos (1).
Sobre o que o meu amigo pede os papéis não os posso mandar já pela seguinte razão, Sá-Carneiro devia ao hotel uma conta de 200 e tal francos, de maneira que como eu não posso pagar essa quantia espero que qualquer parente me envie essa importância, mesmo porque eu não disponho aqui de muito dinheiro.
Junto lhe envio diversos papéis e uma carta que ele me deixou espero que me possa dizer alguma coisa sobre este assunto.
Pedindo-lhe mais uma vez desculpa de minha mal acabada carta. Creia-me seu amigo muito obrigado
JOSÉ ARAÚJO
P. S. Não foi encontrado um sobretudo novo, um par de botas também novo e o relógio. Julgam que foram
vendidos por ele. Não fui ao cônsul pedir dinheiro nenhum.
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