(Antínoo como Osíris)
"(...) Desci os degraus escorregadios: Antínoo estava deitado no fundo, já mergulhado no lodo do rio. (...) Tudo desmoronava; tudo parecia extinguir-se. O Zeus Olímpico, o Senhor de Tudo, o Salvador do Mundo aluíram; de repente, existiu apenas um homem de cabelos grisalhos soluçando no convés de um barco.
(...)
Dois dias mais tarde, Hermógenes consguiu fazer-me pensar nos funerais. Os ritos de sacrifício que Antínoo escolhera para cercar sua morte mostravam-nos o caminho a seguir: não por acaso a hora e o dia de seu fim haviam coincidido com a hora e o dia em que Osíris descera a seu túmulo.
(...)
(...)
Tive, nesse ano, com a sacerdotisa que outrora me iniciara em Elêusis e cujo nome deve permanecer secreto, vários encontros nos quais foram fixadas, uma a uma, as modalidades do culto a Antínoo. Os grandes símbolos eleusinos continuavam a destilar para mim uma virtude calmante: o mundo talvez não tenha nenhum sentido, mas se tem algum, este exprime-se em Elêusis, mais sabiamente e mais nobremente do que em qualquer outro lugar. Foi sob a influência dessa mulher que empreendi fazer das divisões administrativas de Antinoé, dos seus demos, das suas ruas, dos seus blocos urbanos, um plano do mundo divino ao mesmo empo que uma imagem transfigurada de minha própria vida. Tudo entrava nesse plano, Héstia e Baco, os deuses domésticos e os da orgia, as divindades celestes e as de além-túmulo. Coloquei ali os meus antepassados imperiais, Trajano, Nerva, transformados em parte integrante desse sistema de símbolos. Plotina também encontrava-se lá; a boa Matídia estava assimilada a Deméter; minha própria mulher, com quem eu entretinha nessa época relações bastante cordiais, figurava no cortejo de pessoas divinas. (...) Esse local triste tornava-se a paisagem ideal das reuniões e das lembranças, os Campos Elísios de uma vida, o lugar onde as contradições se resolvem, onde tudo é igualmente sagrado.
De pé diante de uma janela da casa de Arriano, por uma noite semeada de astros, pensava na frase que os sacerdotes egípcios haviam mandado gravar sobre o ataúde de Antínoo: obedeceu a uma ordem do céu. Era possível que o céu nos impusesse suas determinações e que os melhores entre nós as ouvissem lá onde os outros homens só percebem um silêncio esmagador? A sacerdotisa eleusina e Chábrias assim acreditavam. Teria querido dar-lhes razão. Revia em pensamento aquela palma da mão alisada pela morte, tal como a vira pela última vez na manhã do embalsamento; as linhas que me haviam inquietado outrora desapareceram, como acontece nas tabuinhas de cera de onde se apaga uma ordem cumprida. Mas essas altas afirmações iluminam sem aquecer, como a luz das estrelas, enquanto a noite em volta é ainda mais escura. (...)"
(Vila Adriana - Tívoli)
"Natura deficit, fortuna mutatur, deus omnia cernit"
(A natureza nos trai, a sorte muda, um dêus vê do alto todas as coisas)[escrito num anel de Adriano]
(YOURCENAR, M. Memórias de Adriano. op.cit. pps 170-171; 206)
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