20080813

H. H.




ao Rodrigo Petrônio










Antes das atracadas nela mesma, eu rasteio os seus traços em mim; há subterfúgios desastrosos pois verdadeiros, que esta alarmada voz conhece e canta o fogo visto e o fogo buscado, a beleza redundada. Os refúgios da montanha, ou na planície do Sol. Os matos vivendo a não restrição, os animais aceitos como possivelmente eram dantes sonhados nas comunhões. Os álcoois e espaços largos para o nada em visita, que pode sê-lo, que pode ter a cara da morte. É a descoberta da igualdade e da semelhança com o Sem-Nome e a ruminação perdida destes hojes que não mais sabem, destes do afastamento que pode propor a linguagem com suas cidades e conveniências mas que pode além pontear o cuidadoso contato, o erótico, grotesco e a confluência deles no gesto do sublime acordo que dualizamos entre orifícios encardidos e orifícios luminosos. As entradas e saídas do corpo são reentrâncias da fera absurda e do deus mudo, resultando um imenso som de tambores em mulher com seios, expressões de fome e ternura. O contrato com essa descoberta capaz de ser o núcleo de uma realidade: meio do caminho, vermes divinizados e anjos em escarrada. Hilda escolheu seus cacos & carícias, e canta cantou. Sem nomear-se idem ou transversalmente possuída de si. Perdura a caminhada silenciosa de palavras escritas, vozes captadas dos mundos do Tártaro. Ela se anoitece e rejuvenesce em ciclos cotidianos; espreita a muralha convexa de sua imortalidade. Não a que lhe salvaguardará pelos outros que sugam sua exasperação poética, mas nela mesma, decantada e portadora de certezas que são menos conceituais que reais. Ela sobre-existirá: Vem das marés dos mundos que Hilda tangencia e borda e mergulha, sangues voltando à terra, uma mulher alardeando o mistério. Hilda são os tempos das colheitas, terra posta e sementes cristalizadas no de dentro. Não falo desta terra quando digo terra.
Eu vou descendo os seus textos, tenho a imprecisão de as vezes amaldiçoá-la de sedutora de deus, ou na verdade, a sedutora do Sem-Nome. Não sei despi-la de sua dançarina matéria e sinto também que ela pouco quer ver ainda algumas relíquias das religiões que empoeiram o corpo, o homem e a mulher. Hilda quer o corpo que tem, de jeito diferente de corpo... Ela se junta, universo neste corpo, explora os sexos como anjos, obscenidades puras e calvícies da alma, que também enjôo e dá parto. Ela pariu diferente, destrói um feminino puritano, ainda muito pelas esquinas disfarçados de deusas – e arrebata a prostituta feudal e inteligente. Não são essas. O que tem a mulher talvez de mais próprio e revelador de um poder ser está menos em tudo que em uma aproximação desmedida do nada que lhe cobre o rosto, o vazio. Mas não o existencial que argumenta; mas uma desgraça embelezada, que não tem receios de língua ou nome, e que busca um algo. Não é um querer mental ou atitude. É talvez a função da adestradora de leões: força, graça e ritmo. Coragem. Ela caça este nada tão próprio da caçada feminina da maneira mais possível: afaga o desconhecido. Não incuta-lhe o verbo, chama-o com os cabelos. Chega ao colo e chora em odes mínimas a presença da falta gigantesca. Cobre-lhe de dança o manto escuro e crê o que ouve pelas noites ruidosas os desígnios. A mulher só pode ser-se sacerdotisamente. Embutir um apelo de arritmia e outro harmônico, deixando o olhar pouco dilatante mas muito interno. E busca ainda.
Porque a Hilda se ajoelhou e teve o ardor da resposta. É uma coisas bem mesmo de mulher ter o sexo inflado para dentro quando o silêncio além reúne-se na pele e no que sai da pele. Poesia da Hilda é. A Hilda que quis o pai e quer o Pai, agora não deve mais dizer os ‘as’ e as copas pois não havendo os receptores por aqui. Não são aqui as palavras que ela tem e tinha; deve ter calcado muito no Outro, no trabalho e em refrigeração resposta nenhuma daquela gravidade cósmica. Pouco captam-na, seu recurso de receios, veste de palavras. Ela é outro homem. Esse deus que é dela, que falava... e o trabalho que teve em chegar-se nele, chegar-se nela, chagar-se nela, a Hilda me diz da solidão. E só ela não fantasia a besta: a cabeça compreende às meias taças e ela bebeu inteira, arroxeou, como é sangue este líquido todo que aeriza o nada pela Terra, ela desculpou-se – porque foi demais na beleza – mas dentro não se fodia com o que fosse o outro, este outro de pessoas dos trânsitos externos que não distinguem o igual. Ser santa não pedia olhares.

E o pai. Eles conversaram. Queria eu olhá-los juntos embranquecidos. Queria mesmo, queria muito. Aqui ainda dizem das notas e dos juncos, porcaria. Infantilizam de ‘pornográfica’ a Hilda! Juntai-me aos porcos e cadelas porque o sagrado tem bem a pata destes e foi aquecido, na luz ela tem seu encontro aos bichos e às traças. A Hilda, que fogosa desses abismos! Entretanto o deus disse para ela e ela então. Ainda o que é do Outro se perdura nos aquis do corpo terreno, porque não somos mesmo esse indivisível? Sim, mesmo em por enquanto. E nesse entanto enquanto, das torturas carregantes do amor, o encerramento doloroso só pode ser matizado pela entrega; da espera de conhecer-se mais ainda ao que é dor insuportável. A mulher que sabe amparar sua dor no sofrimento. Acolhe-o, maternalmente. As leoas infelizes do parto, contudo cuidadosas... Ainda teme-o, distancia-se: por entendê-lo tanto e tanto tê-lo - sofre, senão jamais poderia a ousada chegança inteiriça. Disso talvez o nome das bruxarias: a mulher suporta-se indo. E a Hilda “Que este amor não me cegue nem me fira” porque “Isso de mim que anseia despedida/ (Para perpetuar o que está sendo) / Não tem nome de amor (...)”. Só é permitido, a Hilda esgarça: Ter àquele que abdica. Não chamando de Amor o que (não) é. Não chamando simplesmente que assim a chama. “Como se só na morte abraçasses a vida”.
E o pai retoma, eu entrevejo, diz-lhe, à filha: “Os corvos, os corvos estão chegando, eles estão cheios de sangue”. Ela redime: “O Nunca Mais não é verdade / (...) / Nem é corvo ou poema o Nunca Mais”, ela torna pomba este corvo e margeia a morte mesmo que no medo, no medo.
Hilda tem o de lá, é a túnica corpórea que reclama ao fim, põe-se em fogo, como clamo, a Hilda. O resto que é tudo, que conhece o Sem-Nome e comunga do Nunca-Mais. “O Nunca-Mais é a fera”. Sua poesia, seu teatro, a sua prosa presenciaram a indelével voz e cantaram-na na harpa da palavra. Não nuca foi o vão, Hilda. Os que te leram nas entranhas escancaradas têm o suspiro. Os outros não te ousam. Eles não ousam a vida desta pureza santa tua.
Amarras tuas línguas mas te convenço que fluem cascatas no que te lê.
O que a Hilda borra e destaca? O que ela pertence e despede?
Aquilo que não abre a dor santificada, o amor natural, a profeta entre runas e ruínas de homens e mulheres, o martírio puro das verdades. É ao Outro deus, ‘esse’ - “Pertencer é não ter Rosto. É ser amante / De um Outro que nem nome tem. Não é Deus nem Satã. / Não tem ilharga ou osso. Fende sem ofender. / É vida e ferida ao mesmo tempo, “esse” / que me saiba inteira pertencida” – que poucos vêem. Ela é Aquela. “(...) E aquela é luz. E etérea”.
A Hilda, que deus teu? O Sem-Nome não é pátria, o deus não é caridoso. O deus comporta as feras que nas noites esverdeadas nos arregalam a gula oca. O que machuca, o deus enovelado de nojo, criação e criaturas enoveladas de esperanças beatas, o deus murcho. Também. O deus cavalo. Este sim. Os empilhamentos de sombras, o deus que menstrua, a faculdade do absinto em teus lábios franjados, o nada em minuto, as reservas aquietadas em um deus sobretudo. O tapete de cães, os ganchos das carnes, os sangues, o sangue pelas narinas, a boa mãe dolorosa. “(...) A crueldade. / Que é o som de Deus.” Hilda entrou silenciosa nos terreiros. Não quis a percepção. Que sendo tida teria visto o maremoto vermelha, então foi cautelosa, assim. Para Hilda o fruto não foi proibido.






...


(escrito há tempos, decantado numa substância de penumbras, entre os guardados, a flecha riste que não me cessa, a Hilda)






I
Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.
Antes, o cotidiano era um pensar alturas
Buscando Aquele Outro decantado
Surdo à minha humana ladradura.
Visgo e suor, pois nunca se faziam.
Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo
Tomas-me o corpo. E que descanso me dás
Depois das lidas. Sonhei penhascos
Quando havia o jardim aqui ao lado.
Pensei subidas onde não havia rastros.
Extasiada, fodo contigo
Ao invés de ganir diante do Nada.






(poema do livro Do desejo)

Nenhum comentário: