20080805

Elêusis / Memórias de Adriano

[trecho]


"(...) Dezoito meses mais tarde, fiz-me iniciar junto a Elêusis. A visita a Osroés tinha marcado, em certo sentido, uma mudança na minha vida. Em vez de voltar para Roma, decidi consagrar alguns anos às províncias gregas e orientais do império: Atenas tornou-se cada vez mais minha pátria, o centro do meu universo. Empenhava-me em agradar os Gregos e também em helenizar-me o máximo possível; essa iniciação, motivada em parte por considerações políticas, constituiu, entretanto, uma experiência religiosa sem igual. Os grandes ritos não fazem mais do que simbolizar os acontecimentos da vida humana, mas o símbolo vai mais longe que o ato, explica cada um dos nossos gestos em termos do mecanismo eterno. Os ensinamentos recebidos em Elêusis devem permanecer secretos: aliás, suas probabilidades de serem divulgados são muito poucas, devido à sua natureza inefável. Formulados, não iriam além das evidências mais banais; nisso consiste justamente sua profundidade. Os graus mais elevados que me foram conferidos em seguida, durante conversações privadas com o Hierofante, não acrescentaram quase nada ao impacto inicial experimentado pelo mais ignorante dos peregrinos que participa das abluções rituais e bebe da nascente. Tinha ouvido as dissonâncias resolverem-se em harmonias; apoiara-me, por um momento, sobre uma outra esfera, contemplara de longe, mas também de muito perto, a procissão humana e divina onde eu tinha o meu lugar, esse mundo onde a dor ainda existe, mas não mais o erro. O destino humano, esse vago traçado no qual o olhar menos exercitado reconhece tantas faltas, cintilava como desenhos no céu.
Aqui convém mencionar um hábito que me atraiu, durante toda a minha vida, a caminhos menos secretos que os de Elêusis, mas que acabam por lhe serem paralelos: quero falar do estudo dos astros. Fui sempre amigo dos astrônomos e cliente dos astrólogos. A ciência destes últimos é incerta, falsa nos detalhes, talvez verdadeira no todo: já que o homem, parcela do universo, é comandado pelas mesmas leis que presidem o céu, não é absurdo procurar lá em cima os temas das nossas vidas e as frias simpatias que participam dos nossos êxitos e dos nossos erros. (...) Inclinava-me a acreditar, como alguns dos nossos sábios mais ousados, que a Terra também tomava parte nessa marcha noturna e diurna de que as santas procissões de Elêusis são, quando muito, o simulacro humano. Num mundo onde tudo não é mais que um turbilhão de forças, uma dança de átomos, onde tudo está ao mesmo tempo em cima e embaixo, na periferia e no centro, era difícil conceber a existência de um globo imóvel, de um ponto fixo que não fosse simultaneamente móvel. Outras vezes, os cálculos da precessão dos equinócios, estabelecidos outrora por Hiparco de Alexandria, tornavam-se uma obsessão em minhas vigílias noturnas: sob a forma de demonstração e não mais de fábulas ou de símbolos, encontrava neles o mesmo mistério eleusíaco da passagem e do regresso. A Espiga da Virgem já não se encentra mais, nos nossos dias, no mesmo ponto em que a carta de Hiparco a assinalou, mas essa variação é a conclusão de um ciclo, e o próprio delocamento confirma as hipóteses do astrônomo. Lentamente, inelutavelmente, o firmamento voltará a ser o que era no tempo de Hiparco, e será novamente o que é no tempo de Adriano. A desordem integrava-se na ordem; a transformação fazia parte de um plano que o astrônomo era capaz de captar por antecipação; o espírito humano revelava aqui sua participação no universo pelo estabelecimento de teoremas exatos, tal como em Elêusis pelos gritos rituais e danças. O homem que contempla e os astros contemplados rolavam inexoravelmente em direção a seu fim, assinalado em qualquer parte do céu. Cada instante dessa queda era um tempo de parada, um ponto de referência, um segmento de uma curva tão sólida quanto uma cadeia de ouro. Cada deslizamento nos conduzia ao ponto que nos parece o centro do mundo porque, por acaso, nele nos encontramos".

(YOURCENAR, Marguerite. Memórias de Adriano. SP: Folha de São Paulo, 2003. pp. 126 -129)


Adriano (76 d.C - 138 d.C) Papoulas crescendo nas ruínas de Elêusis


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