20120703

Amei de maneira obscura porque pertenço à Terra, uma nota sobre estar com MATAMOROS







Estive, na última sexta-feira, no CENTRO CULTURAL DA JUSTIÇA FEDERAL, especialmente para ver a montagem de Matamoros, texto de Hilda Hilst que integra o livro-trilogia “Tu não te moves de ti”, publicado no ano em que nasci, 1980. Era comecinho de noite, andei pela Av. Rio Branco, frenesi na Cinelândia, hora boa de sexta, fim dos trabalhos. Havia movimento no Centro Cultural, o café ao lado estava quente, e eu já havia entrado na sala expositiva onde aconteceria a peça, que antes de acontecer, fica aberta aos visitantes, com a exposição de Cafi sobre Matamoros. A sensação no relance é de acolhimento, húmus, lentidão, horto. Ressoa a experiência do texto, as várias camadas de terra que vestimos e despimos, ao lê-lo. A vontade de pisar em coisas sanguíneas e espremê-las nas mãos e na boca. O gosto por deixar-se num canto escuro próximo de qualquer fio d’água. Tudo aquilo que é lugar de resgatar o erotismo da infância, as primeiras larvas da quentura. A sala é um retângulo mas é um círculo e é elementar: uma lâmpada verde e outra vermelha nos mostram essa simples ocorrência da polaridade entre a terra e o fogo, o não mover-se de si em constante movimento. Lâmpadas que balançam, que nos tocam a cabeça quando passamos por elas. Terra no chão. Folhas. Botas de borracha iluminadas. Uma grande mesa que é também um grande espelho do universo elástico deitado, mirando o de cima e o de baixo, em feixes de luz e profundidade. Na parede frontal, inteiro, o rosto da atriz Maíra Gerstner, dizendo trechos do texto, uma cara inteira projetada nesta superfície pintada a pedra cintilante, um rosto e uma boca que são sons saídos de uma colheita antiquíssima, que vai dar no olho e na boca de quem ali olha e morde. Mexo meus lábios, mordo-os. Estou sentada neste lugar, este lugar sem tempo, quebrei o estilhaço das ilusões de lá fora ser Rio de Janeiro, estou inteira dentro, dentro-fora, abrindo a pele para que a hora entre, venha, faça-se voz, fome, fantasia.
        Às 19hs voltei à sala, a mesma sala da exposição de Cafi. Uma atriz corajosa, Maíra já Matamoros, recebia um por um os olhos dos que entravam. O começo de uma peça é sempre uma hipnose. Lucidíssima. Um pacto de coral, canto conjunto, um fluxo. Um convite como toda página. Já estamos dentro, com a primeira voz que sai de Matamoros, Maíra. O texto da Hilda está ali, inteiro, louvado, dito. Em toda a peça, mínimas alterações, quase tudo é a sequencia intensa da própria Hilda, e isso é já um tremendo, a coragem de não simplificar, de não facilitar. Aliás, é tão cativante e tão para ser dito, este texto, que, além da entrega que a Hilda convoca em tudo que rasgou com sua voz, não é preciso mais nada. Quem está ali, está.
        Maíra cresce da menina Matamoros à Matamoros madura, mulher que assiste a seiva espraiar-se, sair de si e voltar à terra originária, à mãe Haiága, rejuvenescida em ciclos de paixão. Matamoros pode ser o nome arcaico da infância, quando tudo era toque e contágio, quando o corpo era extensão da carne das coisas dadas, das palavras, do sem medo das línguas, dos animais, da visão de tudo em seus poros, dilatados. Matamoros é a mulher depois, que possuída pelo crescente da paixão aprende do corpo o verbo no possessivo, e chama a fulgurante experiência do convívio íntimo de deus, convocando-o a fulminá-la, a fecundá-la, a preenchê-la com o melaço e altar da escura alquimia.
        Matamoros e Haiága – a mãe Gaia, Haia, Geia, a grande-mãe –  vivem neste intervalo, esculpido de terra e carne, intervalo onde se espelham os grandes terrores maravilhosos de ter corpo, e gastá-lo para o êxtase e para o inevitável declínio. Terra cintilosa, terra púrpura, miniatura viva da centelha abundantemente sem nome: mãe e filha gozam da companhia do homem, o pai, o anjo da casa, meu, o adorado, o que fez da carne o sabor divino.
        Hilda escava esses universos arcaicos de cada um de nós. Sempre o fez, sempre o faz. A trindade primeira: ser filha de mãe e de pai, existir a partir da paixão, que é gozo e luto, pesar e melodia, coisa de coisas que se roçam e fazem assim a vida seguir ondulando, serpenteada. Existir a partir da gota de gozo na cave sombria de um ventre que é machucado macio. Estar atada à envergadura do desejo, desde o primeiro grito, violento. Como arar por dentro o reflexo luminoso do opaco e lento do corpo, que se move linho pelo canteiro de sangue e sumo, centopéica carnadura, lívida de troncos e línguas, culminando em pó e densidade? Matamoros mata-se-de-amores, morre-se-de-amores, mat’amoros, mais amor, quer mais, quer o implacável, quer o meu de seu próprio jorro. Está viva e com a fome sobre a vida.
        Mas há esse jogo de forças, esse antagonismo, essa jaula que a carne enforma. A mãe é futura, é aquela que reverdece depois de ti. Não é elegíaca a voz da natureza, mas a nossa. Enquanto Matamoros sobe o morro de sua agonia febre-fulgor, a mãe se despe de seu silêncio e de sua velhice e torna a inchar os mamilos e mostrar os dentes. É um túmulo o ventre, uma mesa farta, uma promessa. Simultaneamente, e essa a dobra que Matamoros vê em si, rodando subindo em busca de romper com a foice odienta do amor, o ciúme da mãe renascida, a vontade de inteira e única caber na vida desejosa em que vive e inventa seu homem, seu pai, seu deus, seu dia, sua voz.
        Ela será o cordeiro da casa, o cordeiro de sua própria casa. Come de sua placenta, se oferta aos progenitores que são, ao mesmo tempo, passado e futuro de sua carne. Maíra Gerstner, Matamoros, nos alça a todos os convivas, todos que estamos ali, um brinde tinto de seu sangue. Em pequeninas taças, como Alices num intervalo de fantasia mergulho, bebemos com ela esse deitar-se com o delírio, com a paixão, com o desejo, com tudo que faz do sopro um corpo, com tudo que faz do sonho uma matéria.
        A direção de Bel Garcia é delicada, quase desaparece. A soma de Bel e Maíra fazem com que o ritual de atravessar Matamoros aconteça sempre em estado de surpresa, mesmo para quem já havia atravessado o texto. O epifânico tenebroso da criança está ali. O epifânico tenebroso da fantasia. A fusão do texto com as imagens, exposição e vídeo está casadíssima. Tudo tão ali que as coisas se pertencem, você não vê detalhes porque nada sobressalta, nada sai do arranjo, nada destoa do rito. Uma equipe que trabalhou em roda, se vê. E uma compreensão muito íntima de Bel e Maíra do que é e pode ser Matamoros: essa cosmogonia criativa que nasce do erotismo da infância, hora mais aguda da voragem.
        Deixei a sala o círculo o dentro-do-tempo e fiz-me durar. Havia lua cheia. E um bloco de papel na mão, uma caneta roxa. Deixei durar. Agora torço para que a peça venha a São Paulo, quero muito mais vezes lamber o vivo com Matamoros




        




galeria de imagens feitas lá








Nenhum comentário: