Estive, na última sexta-feira, no CENTRO
CULTURAL DA JUSTIÇA FEDERAL, especialmente para ver a montagem de Matamoros, texto de Hilda Hilst que
integra o livro-trilogia “Tu não te moves de ti”, publicado no ano em que
nasci, 1980. Era comecinho de noite, andei pela Av. Rio Branco, frenesi na Cinelândia,
hora boa de sexta, fim dos trabalhos. Havia movimento no Centro Cultural, o
café ao lado estava quente, e eu já havia entrado na sala expositiva onde
aconteceria a peça, que antes de acontecer, fica aberta aos visitantes, com a
exposição de Cafi sobre Matamoros. A sensação
no relance é de acolhimento, húmus, lentidão, horto. Ressoa a experiência do
texto, as várias camadas de terra que vestimos e despimos, ao lê-lo. A vontade
de pisar em coisas sanguíneas e espremê-las nas mãos e na boca. O gosto por
deixar-se num canto escuro próximo de qualquer fio d’água. Tudo aquilo que é
lugar de resgatar o erotismo da infância, as primeiras larvas da quentura. A sala
é um retângulo mas é um círculo e é elementar: uma lâmpada verde e outra
vermelha nos mostram essa simples ocorrência da polaridade entre a terra e o
fogo, o não mover-se de si em constante movimento. Lâmpadas que balançam, que
nos tocam a cabeça quando passamos por elas. Terra no chão. Folhas. Botas de
borracha iluminadas. Uma grande mesa que é também um grande espelho do universo
elástico deitado, mirando o de cima e o de baixo, em feixes de luz e
profundidade. Na parede frontal, inteiro, o rosto da atriz Maíra Gerstner,
dizendo trechos do texto, uma cara inteira projetada nesta superfície pintada a
pedra cintilante, um rosto e uma boca que são sons saídos de uma colheita
antiquíssima, que vai dar no olho e na boca de quem ali olha e morde. Mexo meus
lábios, mordo-os. Estou sentada neste lugar, este lugar sem tempo, quebrei o
estilhaço das ilusões de lá fora ser Rio de Janeiro, estou inteira dentro,
dentro-fora, abrindo a pele para que a hora entre, venha, faça-se voz, fome,
fantasia.
Às 19hs voltei à sala, a mesma sala da
exposição de Cafi. Uma atriz corajosa, Maíra já Matamoros, recebia um por um os
olhos dos que entravam. O começo de uma peça é sempre uma hipnose. Lucidíssima.
Um pacto de coral, canto conjunto, um fluxo. Um convite como toda página. Já
estamos dentro, com a primeira voz que sai de Matamoros, Maíra. O texto da
Hilda está ali, inteiro, louvado, dito. Em toda a peça, mínimas alterações,
quase tudo é a sequencia intensa da própria Hilda, e isso é já um tremendo, a coragem
de não simplificar, de não facilitar. Aliás, é tão cativante e tão para ser
dito, este texto, que, além da entrega que a Hilda convoca em tudo que rasgou
com sua voz, não é preciso mais nada. Quem está ali, está.
Maíra cresce da menina Matamoros à
Matamoros madura, mulher que assiste a seiva espraiar-se, sair de si e voltar à
terra originária, à mãe Haiága, rejuvenescida em ciclos de paixão. Matamoros
pode ser o nome arcaico da infância, quando tudo era toque e contágio, quando o
corpo era extensão da carne das coisas dadas, das palavras, do sem medo das
línguas, dos animais, da visão de tudo em seus poros, dilatados. Matamoros é a
mulher depois, que possuída pelo crescente da paixão aprende do corpo o verbo
no possessivo, e chama a fulgurante experiência do convívio íntimo de deus,
convocando-o a fulminá-la, a fecundá-la, a preenchê-la com o melaço e altar da
escura alquimia.
Matamoros e Haiága – a mãe Gaia, Haia,
Geia, a grande-mãe – vivem neste
intervalo, esculpido de terra e carne, intervalo onde se espelham os grandes
terrores maravilhosos de ter corpo, e gastá-lo para o êxtase e para o
inevitável declínio. Terra cintilosa, terra púrpura, miniatura viva da centelha
abundantemente sem nome: mãe e filha gozam da companhia do homem, o pai, o anjo
da casa, meu, o adorado, o que fez da
carne o sabor divino.
Hilda escava esses universos arcaicos de
cada um de nós. Sempre o fez, sempre o faz. A trindade primeira: ser filha de
mãe e de pai, existir a partir da paixão,
que é gozo e luto, pesar e melodia, coisa de coisas que se roçam e fazem assim
a vida seguir ondulando, serpenteada. Existir a partir da gota de gozo na cave
sombria de um ventre que é machucado
macio. Estar atada à envergadura do desejo, desde o primeiro grito,
violento. Como arar por dentro o reflexo luminoso do opaco e lento do corpo,
que se move linho pelo canteiro de sangue e sumo, centopéica carnadura, lívida
de troncos e línguas, culminando em pó e densidade? Matamoros mata-se-de-amores, morre-se-de-amores, mat’amoros,
mais amor, quer mais, quer o implacável, quer o meu de seu próprio jorro. Está viva e com a fome sobre a vida.
Mas há esse jogo de forças, esse
antagonismo, essa jaula que a carne enforma. A mãe é futura, é aquela que
reverdece depois de ti. Não é elegíaca a voz da natureza, mas a nossa. Enquanto
Matamoros sobe o morro de sua agonia
febre-fulgor, a mãe se despe de seu silêncio e de sua velhice e torna a
inchar os mamilos e mostrar os dentes. É um túmulo o ventre, uma mesa farta,
uma promessa. Simultaneamente, e essa a dobra que Matamoros vê em si, rodando
subindo em busca de romper com a foice odienta do amor, o ciúme da mãe
renascida, a vontade de inteira e única caber na vida desejosa em que vive e
inventa seu homem, seu pai, seu deus, seu dia, sua voz.
Ela será o cordeiro da casa, o cordeiro de
sua própria casa. Come de sua placenta, se oferta aos progenitores que são, ao
mesmo tempo, passado e futuro de sua carne. Maíra Gerstner, Matamoros, nos alça
a todos os convivas, todos que estamos ali, um brinde tinto de seu sangue. Em pequeninas
taças, como Alices num intervalo de fantasia mergulho, bebemos com ela esse
deitar-se com o delírio, com a paixão, com o desejo, com tudo que faz do sopro
um corpo, com tudo que faz do sonho uma matéria.
A direção de Bel Garcia é delicada,
quase desaparece. A soma de Bel e Maíra fazem com que o ritual de atravessar
Matamoros aconteça sempre em estado de surpresa, mesmo para quem já havia
atravessado o texto. O epifânico tenebroso da criança está ali. O epifânico
tenebroso da fantasia. A fusão do texto com as imagens, exposição e vídeo está
casadíssima. Tudo tão ali que as coisas se pertencem, você não vê detalhes
porque nada sobressalta, nada sai do arranjo, nada destoa do rito. Uma equipe
que trabalhou em roda, se vê. E uma compreensão muito íntima de Bel e Maíra do
que é e pode ser Matamoros: essa cosmogonia
criativa que nasce do erotismo da infância, hora mais aguda da voragem.
Deixei
a sala o círculo o dentro-do-tempo e fiz-me durar. Havia lua cheia. E um bloco de
papel na mão, uma caneta roxa. Deixei durar. Agora torço para que a peça venha
a São Paulo, quero muito mais vezes lamber o vivo com Matamoros.
galeria de imagens feitas lá
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