amanhã nesta mesma hora estarei prestes a cruzar o portão, o portal
e derramar-me fora da justeza deste tempo absorto
eu sei que logo ali, olhando depois do muro, há uma casa e mais outra e ainda muitas
mas elas se desestabilizam fora desta BOLHA que é a casa do sol
aqui não há nada, eu disse chegando, não há mesura
não há tamanho ou duração da experiência: sim, há demasiado passado
mas passado vivo, triufante, forte como a vegetação que rodeia a casa
e as espadas de são jorge que aqui dão em abudância
é fresca a atmosfera, levíssima
(eu pensava sustos, calculava medos
nas noites, antes de aqui chegar)
mas a casa é PROTEGIDA, aterrada FLUTUA
paira forte, abençoada, com todos esses cães psicopompos
que guardam as tantas portas transparentes
em que os mundos se cruzam, tempos se intercalam
dimensões se dilaceram: atravessa-se
neles a cada dobra do corpo e do pensamento
e o que já sei que posso dizer de tudo que vivi aqui
é essa imagem de um reservatório, um cântaro, um poço
(o poço de água boa bem no centro da casa)
não chorei, eu sempre choro depois nunca no impacto
(o impacto que suspende, vai nutrindo)
(então depois)
mas muito me comovi, indo lenta e respeitosa
ao convívio das coisas que tocaram
o espírito de Hilda Hilst
...
ontem lemos, na noite, Jurandy, Isadora e eu
nossos poemas
brindamos a Baco, que ele é bem-vindo nesta casa
e vimos, uma por uma, as fotos de Hilda, que saíam de dentro
de caixas, velha-menina-e-moça, serpentina serelepe,
risonha fada, anciã da face consumida
lemos cartões endereçados a ela (um de Caio F Abreu)
e tocamos em manuscritos e originais, rasurados, emendados,
lindos, os lemos, os lemes, singrantes
ah Hilda...
é possível que uma pequena aranha tenha passado pelo meu braço esta noite
há ali uma mordida, um rosto na pele
são maneiras de ficar na casa, em pedaços de pele em pó
e em sangue, sinuoso sangue, ah, ter tocado esta morada!
amanhã pois sai: de volta à outra vida...
outros textos...
outras enchentes...
e carrego na sacola o nome de Colin Wilson, a paixão de Hilda por Jung, Marguerite Duras
e seus amados Otto Rank e Bertrand Russel, Joyce, ah, quem...
cozinhei com pimenta e canela, esta tarde
Isadora sabe a medida exata do café
Jurandy abre o dia em seu macacão branco sorrindo as "saborosas manhãs 2012"
... imagino com textura e gosto que isso seja muito próximo do concreto vivo lúdico e lúcido
da 'comunidade'... a casa está aberta, vamos e voltamos, e quando nela
as coisas se ajeitam, acontecem, os horários estão em si, pontuais
(sou pontual no meu prazer)
e assim seguimos, 3, 4, 5, 6, 7, todos aqui, juntos em cada um ser prazer
...
entardece o roséo da casa
estou sentada na mesa em frente à lareira (vês, pergunto-te)
na cabeceira, onde a Hilda se sentava (aqui)
logo mais vamos chamar o fogo, cantá-lo
estou aonde, divago, não sei
estou nesta palavra rica, nesta madeira que espera por queimar
na casa em que viveu Hilda Hilst e vive e viverá
...
deixo como pré-depedida impossível
mais páginas do diário do ano 1980
ano da última paixão de Hilda
ano da escrita de A obscena senhora D.
e sua lírica devastada
ano em chagas
...
E V O É
Um comentário:
A que parte da casa se refere esta ultima foto?
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